segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Freud e a "perversão": os Três ensaios (2)


Continuamos nossa leitura dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade a partir da seção em que Freud passa da análise da bissexualidade à da radical contingência de alvos e objetos da pulsão sexual, seção esta dedicada a “animais e pessoas sexualmente imaturas como objetos sexuais” (Freud, 1996 [1905], p. 140).  

Dos "invertidos" – que “afiguram-se ao observador como uma coletânea de indivíduos talvez bastante válidos em outros aspectos” (Ibid., p. 140) – aos “desde logo encarados como aberrações” (Ibid., p. 140), seu propósito continua sendo o de argumentar contra a, digamos, segregação teórica dos assim chamados perversos: “por motivos estéticos de  bom grado se atribuiriam estas e outras aberrações graves da pulsão sexual à loucura, mas isso não é possível” (Ibid., p. 140). O termo ‘loucura’, é bom esclarecer, não era o predecessor do campo específico da psicose, distinto do da perversão. Freud não está separando psicose e perversão, mas fazendo a perversão deslizar na simples “escala que vai da saúde à perturbação mental” (Ibid., p. 141). As forças que a mantém em um dos pólos – o da perturbação, da loucura – são meramente estéticas.

O que Freud valoriza a respeito continua sendo simplesmente a plasticidade da pulsão: “o fato de ela admitir tão ampla variação e tamanho rebaixamento de seu objeto” (Ibid., p. 140). Rebaixamento, por sua vez, que só ganha importância como tal por razões culturais. Ao contrário dos gregos antigos, “nós menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto” (Ibid., p. 141, nota 1). Mesmo assim, a flexibilidade da pulsão sobrevive às sanções culturais,  o que se evidencia, por exemplo, na freqüência das relações sexuais com animais entre os camponeses (Ibid., p. 140). De forma geral, “muitos são os anormais na vida sexual que, em todos os outros pontos, correspondem à média, e que passaram pessoalmente pelo desenvolvimento cultural humano” (Ibid., p. 141).   

Terminando suas considerações sobre os objetos sexuais com a convicção de que “o essencial e constante na pulsão sexual é alguma outra coisa” (Ibid., p. 141), já que é bastante freqüente que “a índole e o valor do objeto sexual pass[e]m para segundo plano” (Ibid., p. 141), Freud passa aos alvos sexuais (ações para as quais a pulsão impele), onde a fronteira entre perversão e normalidade fica ainda mais tênue. É que muito do que é considerado ‘perversão’ torna-se normal desde que se apresente como um alvo sexual preliminar ao coito. E o que é considerado preliminar são na verdade atividades que “trazem prazer em si mesmas” (Ibid., p. 141). Beijar, tocar e olhar, por exemplo. Por sinal, é digno de nota, como testemunho de uma certa contingência histórica no que se convenciona chamar de ‘perversão’, que “o uso da boca como órgão sexual” fosse em 1905, tão simplesmente, “considerado como perversão quando os lábios (língua) de uma pessoa entram em contato com a genitália de outra” (Ibid., p. 143).

O que a discussão sobre os alvos sexuais produz em termos teóricos é um interesse específico por um conflito mais amplo, que suplanta a delimitação da fronteira perversão/normalidade, condicionando-a: a oposição entre as forças de supervalorização e de asco, que examinaremos em seguida.

Referências:
FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Disponível como ebook em inglês (Three Contributions to the Theory of Sex) no site da Kobo:Kobo has over 2 million ebooks to choose from!

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