Terminamos o último post mencionando o conflito entre supervalorização e asco. Pois bem, a supervalorização é a força que “não suporta bem a restrição do alvo sexual à união dos órgãos genitais propriamente ditos” (Ibid., p. 142). Essa força, responsável pelo que tradicionalmente se diria serem ‘desvios’ do alvo sexual ‘normal’ (será assemelhada progressivamente à pulsão em si), é também, no entanto, a fonte da “credulidade do amor” (Ibid., p. 142), do que só pode ser entendido como a mais corriqueira paixão romântica: “uma cegueira lógica (enfraquecimento do juízo) perante as realizações anímicas e as perfeições do objeto sexual” (Ibid., p. 142). Através disso, a supervalorização seria também a fonte de qualquer atitude de submissão à autoridade (Ibid., p. 142).
O asco, por sua vez, mesmo sendo, como contraponto da supervalorização, um dos responsáveis pela restrição do alvo sexual, não é exatamente um normatizador da sexualidade. Freud insinua que o asco é um critério intuitivo para decidir que práticas sexuais são aceitáveis e quais são perversas: quem “detesta” (Ibid., p. 143) determinadas práticas “por considera-las perversões” (Ibid., p. 143) está cedendo “a um claro sentimento de asco” (Ibid., p. 143). No entanto, além de ser puramente convencional – “aquele que beija com ardor os lábios de uma bela jovem talvez usasse com asco a escova de dentes dela” (Ibid., p. 143) –, tem também seu aspecto patológico, estando sujeito a excessos paradoxais: “os genitais do sexo oposto, em si mesmos, podem constituir objetos de asco, e (...) esse comportamento é uma das características de todos os histéricos” (Ibid., p. 143-144). Mesmo quando discute o “uso sexual do orifício anal” (Ibid., p. 144), não deixa de relativizar a validade do asco como critério para nortear a delimitação dos ‘desvios’ sexuais:
É a repugnância que apõe nesse alvo sexual o selo da perversão. (...) A fundamentação desse asco no fato de tal parte do corpo servir à excreção e entrar em contato com o asqueroso em si – os excrementos – não é muito mais convincente do que a razão fornecida pelas moças histéricas para explicar seu asco ante o órgão genital masculino: que ele serve à micção (Ibid., p. 144).
A “supervalorização psicologicamente necessária do objeto sexual” (Ibid., p. 145) vai fazer a ponte para que Freud discuta o fetichismo. O tema deveria ter sido tratado ainda na seção sobre os desvios quanto ao objeto, “mas o adiamos até tomar conhecimento do fator da supervalorização sexual, da qual dependem estes fenômenos” (Ibid., p. 145). O fetichismo parece reinvindicar um nicho próprio, mas um nicho que já transcende suficientemente qualquer intenção de delimitar uma fronteira entre perversão e normalidade. Neste sentido, é de se esperar que só viesse a ser discutido depois que Freud introduzisse a tensão mais generalizada, fundamentalmente humana, entre supervalorização e asco.
Assim, o fetichismo, “sumamente interessante” (Ibid., p. 145), vai poder ser relacionado, por exemplo, à religiosidade de povos antigos – “o fetiche em que o selvagem vê seu deus incorporado” (Ibid., p. 145) – ou, novamente, à paixão – “certo grau desse fetichismo costuma ser próprio do amor normal” (Ibid., p. 145) –, ilustrada por um trecho de Goethe: “traz-me de seu regaço um lenço, por favor, uma liga que aplaque esta sede de amor” (Ibid., p. 146, nota 1).
O interesse no fetichismo que Freud considera patológico – quando “o anseio pelo fetiche se fixa (...) e se coloca no lugar do alvo sexual normal, e ainda, quando o fetiche se desprende de determinada pessoa e se torna o único objeto sexual” (Ibid., p. 146) – parece condicionado pela semelhança que o fetiche guarda com um sintoma neurótico. Em nota de 1920, sugere que
por trás da primeira lembrança do aparecimento do fetiche, há uma fase submersa e esquecida do desenvolvimento sexual, substituída pelo fetiche como que por uma “lembrança encobridora”, e cujo resto e sedimento, portanto, o fetiche representa (Freud, 1996 [1905], p. 146, nota 2).
A aproximação entre o fetichismo e mecanismos tipicamente neuróticos, como as lembranças encobridoras (discutidas por Freud em texto de 1899), colocam, ou melhor, poderiam ter colocado freios a intenções de definir a perversão como uma estrutura clínica específica, ou mutuamente excludente à neurose. Se não foi o que ocorreu, discutiremos o ponto com mais detalhes a propósito do texto de 1927 dedicado a tal peculiaridade sexual. Por ora, continuaremos nossa leitura dos Três ensaios, sublinhando a disseminação freudiana dos mecanismos que subjazem às configurações mais caricatas da sexualidade a todos os seres humanos, em maior ou menor grau - ou sob maior ou menor quantidade de disfarces.
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