sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Freud e a "perversão": Os Três ensaios (1)


Dois dos pressupostos dos quais Freud se ocupa bastante no primeiro de seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, decididamente no sentido de equivocá-los, são o alcance limitado do que se considera ‘perversão’ e seu caráter patológico. O texto, aliás, se inicia deixando  claro que quem está na berlinda é a normalidade, a “suposta norma” (Freud, 1996 [1905], p. 128).

A idéia segundo a qual a pulsão sexual “seria exteriorizada nas manifestações de atração irresistível que um sexo exerce sobre o outro, e seu objetivo seria a união sexual” (Ibid., p. 128) é uma “imagem muito infiel da realidade” (Ibid., p. 128). A complexificação das relações entre normalidade e perversão começa então a ser construída. Na seção onde discute os ‘invertidos’ (outro termo do vocabulário oitocentista), submerge-os – a partir de sua experiência clínica – em um verdadeiro tecido de contingências: 

O traço da inversão pode vir de longa data no indivíduo, até onde sua memória consegue alcançar, ou só se ter feito notar em determinada época, antes ou depois da puberdade. Esse caráter pode conservar-se por toda a vida, ou ser temporariamente suspenso, ou ainda constituir um episódio no caminho para o desenvolvimento normal; e pode até exteriorizar-se pela primeira vez em época posterior da vida, após um longo período de atividade sexual normal. Observou-se também uma oscilação periódica entre  o objeto sexual normal e o invertido. Particularmente interessantes são os casos em que a libido se altera no sentido da inversão depois de se ter uma experiência penosa com o objeto sexual normal (Ibid., p. 130). 
  
Se essa manifesta variedade vinha motivando teorizações como, por exemplo, o desenho de uma cartografia para a ‘inversão’ que estabelecesse uma fronteira entre o verdadeiro e o falso homossexual, matizada pelo grau de degeneração envolvido, Freud prossegue no sentido oposto: se o maior candidato a ‘invertido verdadeiro’ no trecho supracitado é aquele no qual a ‘inversão’ vem “de longa data, até onde sua memória consegue alcançar” (Freud, 1996 [1905], p. 130), uma nota de rodapé que data ainda de 1905 adverte que 

as indicações autobiográficas dos invertidos sobre o aparecimento temporal de sua tendência à inversão não são fidedignas, já que eles podem ter desalojado da memória, por recalcamento, a prova de  sua sensibilidade heterossexual (Ibid., p. 130, nota 2). 

Note-se que na psicanálise contemporânea ainda presenciamos algo análogo a esta intenção oitocentista de separar o joio do trigo, digamos assim, ou de distinguir modalidades meramente sintomáticas de modalidades mais estruturais de homoerotismo, todas elas, aliás, entendidas como patologias: Serge André (1995 [1993]), por exemplo, esforça-se em criar critérios para um diagnóstico diferencial psicanalítico entre uma homossexualidade histérica (menos grave) e uma homossexualidade perversa (mais grave). Este autor demonstra ainda seu viés valorativo ao escrever que “é certo que há analistas perversos, tal como há analistas psicóticos. E todo mundo concorda em ansiar por que haja o menor número possível deles” (André, 1995 [1993], p. 18).

Aparentemente perversão e psicose não são só campos de inteligibilidade de dinâmicas psíquicas amplamente disseminadas, e nem mesmo apenas entidades diagnósticas, mas também os estratos mais baixos de uma certa hierarquia de valores. Some-se a isso o elogio, por omissão, da neurose, e temos todos os elementos para compatibilizar a psicanálise, como advertiu Lanteri-Laura, com a “restauração de um neo-moralismo" (Lanteri-Laura, 1994 [1979], p. 134); ou ainda, nas palavras de Foucault, torná-la uma “grande tecnologia da correção e da normalização da economia dos instintos” (Foucault, 2001 [1974-1975], p. 167).

Voltemos a Freud, então, para quem a "inversão" é uma simples “peculiaridade” (Freud, 1996 [1905], p. 130), e transcende e independe da questão patológica. Dissociada da degeneração, uma noção tão ampla quanto pejorativa – Freud, por sinal, a chama de um “juízo” (Ibid., p. 131) –, a inversão será encontrada “em pessoas cuja eficiência não está prejudicada e que inclusive se destacam por um desenvolvimento intelectual e uma cultura ética particularmente elevados” (Ibid., p. 131) ou  ainda, na Grécia antiga, como “um fenômeno freqüente, quase que uma instituição dotada de importantes funções” (Ibid., p. 132). O ponto de vista patológico é assim deslocado, deixando em seu lugar um dado apenas clinicamente relevante: o fato de o sujeito sentir “o fato de sua inversão” como uma compulsão patológica ou não (Ibid., p. 130). 

Junto com a degenerescência, deixa para trás em seguida a explicação baseada no hermafroditismo anatômico, retendo deste, no entanto, a possibilidade de que haja, em nível psíquico, uma “predisposição originariamente bissexual” (Ibid., p. 134). Esta será estendida a todos os seres humanos, como indica a nota de 1915, mencionada em outro post, que fecha as considerações sobre a inversão: 

A investigação psicanalítica opõe-se com toda a firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular. Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta, ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente (Ibid., p. 137, nota 1). 
                                                 
O que Freud extrai da discussão, então, é a tarefa mais importante de “afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto” (Ibid., p. 140). É o que segue fazendo, e veremos em seguida.

Referências:
ANDRÉ, S. (1993) A impostura perversa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
FOUCAULT, M. (1974-1975) Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Disponível como ebook em inglês (Three Contributions to the Theory of Sex) no site da Kobo:Kobo has over 2 million ebooks to choose from!
LANTERI-LAURA, G. (1979) Leitura das Perversões: história de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

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