sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Sexualidade e identidade

Outro tema que me interessa, como podem ter percebido, é a sexualidade. Particularmente as reações que suas variedades mais heterodoxas causam - reações que se fazem presentes inclusive nos que, querendo ou não, com elas flertam(os).

Outro dia li um post do Prof. Marcio Amaral sobre a noção de "atração sexual genética", criada nos anos 80 por Barbara Gonyo a partir de seu desejo pelo próprio filho, que dera para adoção quando ainda bebê e reencontrara vinte e seis anos depois, quando percebeu que o que sentia por ele não era o amor dessexualizado que se espera de relações de tal parentesco. E, se assim como o professor, sou grato tanto à coragem de sua criadora quanto à liberdade de expressão sexual que vimos conquistando, continua a me incomodar o quanto os progressos neste front são ainda dependentes de capturas identitárias e do recurso a um determinismo biológico que ameaça, desde já, sequestrar justamente nossa liberdade.

Explico: é claro que o caso é um prato cheio para qualquer um que, como eu, concorde com as considerações freudianas sobre a sexualidade, sobre o fundamento sexual do mais sublimado amor, sobre o Édipo - que aqui revela ser um complexo que pode nos acompanhar a vida inteira, já que aflige mais Barbara do que seu filho, que resistiu a seus avanços. Só que em Freud o Édipo é, em primeiro lugar, universal e, em segundo, remetido a causas simbólicas, portanto sociais. Diversamente, a genetic sexual attraction, que tem até sigla - GSA -, como manda o figurino dos manuais diagnósticos em psiquiatria, parece não só circunscrever o desejo edipiano numa síndrome, potencialmente capturando-o como exceção, ao invés de regra, mas também o remete a causas fisiológicas: a atração é genética, e seria explicada por uma (ainda) mística afinidade química derivada da semelhança cromossomial entre os dois indivíduos - quase disse sujeitos, mas aqui o termo já não cabe.

Se comecei falando na reação que o desejo heterodoxo causa naqueles que o sentem foi porque é este o mecanismo de defesa mais típico da situação: tomar o desejo como necessário, ao invés de contingente; em seguida adotá-lo como base da subjetividade, aquilo que o define nos fundamentos mais essenciais de seu ser (a captura identitária: "sou homo/bi/pedófilo/zoófilo/fetichista/etc"); e só então partir para a luta política, a meu ver já perdida a esta altura, comprometida pelas mesmas distinções qualitativas que seus próprios guerrilheiros erigiram.

Isso não é nada novo: já em 1917 Freud - sempre ele, eu sei - dava testemunho, por exemplo, em uma de suas conferências, da "reivindicação que fazem os homossexuais ou invertidos de serem uma exceção" (Freud, 1916, p.313), no que faziam eco dos cientistas que buscavam capturá-los numa classificação diagnóstica dentro da psicopatologia sexual. E, como o vienense achou por bem acrescentar à época numa nota de rodapé a seus três ensaios sobre o tema - que já contavam 10 anos desde a primeira publicação -, a qualquer tentativa deste tipo, de delimitar grupos de índole singular com base na sexualidade, a psicanálise não pode senão se opor, e aliás, "com toda a firmeza" (Freud, 1905, p. 137, nota 1).

O que instala uma pulga em minha orelha, então, na louvável busca de elaboração de seu desejo em que se engajou Barbara Gonyo é o potencial de patologização segregacionista do desejo edípico que o conceito que criou carrega. É menor, certamente, que em outras teorias da sexualidade, ainda mais considerando-se que a teleológica (e teológica?) psicopatologia sexual do século retrasado ainda vive - voltaremos a isso eventualmente -, mas ainda acredito que há melhores opções de resistência.

Por exemplo, a desconstrução destas mesmas capturas identitárias, e a devolução do ônus da explicação ao outro lado dessa moeda - a que me dediquei, aliás, durante os últimos anos; se Freud já escrevia que "no sentido psicanalítico (...) o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química” (Freud, 1905, p. 138, nota 1), acrescento a pergunta: por que todo desejo que foge disso - e até os que não fogem, dependendo de a que homem e a que mulher estamos nos referindo - nos incomoda?

Referências:

FREUD, S. (1917) Conferências introdutórias sobre Psicanálise, parte III, Teoria geral das neuroses: conferência XX – A vida sexual dos seres humanos. In: ____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

____. (1905) Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: ____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

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