Parte da densidade do blog se deve à riqueza de referências, me parece. Acho que vou aproveitar os fins-de-semana - este que se inicia cinza, chuvoso (ao menos por aqui) e com notícias pouco estimulantes intelectualmente parece particularmente adequado - para apresentar alguns dos autores que serão, ou já são, recorrentes nos posts. Pra inaugurar, René Girard.
De um ponto de vista histórico-etnológico, talvez ninguém tenha melhor sistematizado as dinâmicas expiatórias de coletividades que René Girard, pensador francês residente nos EUA desde o final da Segunda Guerra. Girard se baseou em uma ampla gama de relatos etnológicos para construir um entendimento da violência coletiva que lança nova luz sobre um extenso espectro de fenômenos, dos rituais de sacrifício mais arcaicos aos fenômenos de perseguição e vitimação mais contemporâneos.
O sistema de Girard tem raízes em uma problemática psicológica, a do desejo, entendido como essencialmente mimético (ou invejoso, diríamos): só se deseja o que um outro deseja ou possui, o que um outro aponta como desejável. Disto decorre um pano-de-fundo de irredutível rivalidade para as relações humanas que, deixada sem freios, tende a desenvolver-se exponencialmente e levar qualquer agrupamento ao extermínio mútuo através da violência recíproca e generalizada.
Este estado hipotético de absoluto caos configura-se como uma crise das diferenças: todos se tornam idênticos na violência que alternadamente sofrem e exercem, revezando-se com velocidade cada vez maior nos papéis de vítima e algoz.
Cada sociedade, tribo, coletividade que passou a existir e funcionar como tal através da superação de uma crise semelhante o fez marcada pelas idiossincrasias de sua experiência específica, mas a linha geral do processo que leva do caos à civilização é sempre a mesma: a união de todos contra um, o que transforma a violência recíproca em violência unânime. "O antagonismo de todos contra todos dá lugar à união de todos contra um único" (Girard, 1990 [1972], p. 104).
O apaziguamento e a integração que este linchamento fundador promove baseiam-se na canalização da violência de todos em direção a um único alvo, que passa a ser percebido como a fonte e causa única de toda violência, o duplo monstruoso de cada um e de todos. Sendo alvo verdadeiramente unânime, não é vingado por ninguém e, portanto, leva consigo, quando assassinado, a violência de todos. Expia, de fato, todo o ódio. "Um linchamento que reconcilia todo mundo, porque todos participam dele" (Ibid., p. 171). Isto ocorre num momento de vida ou morte para a coletividade, o momento mesmo do paroxismo da crise das diferenças, o que motiva o posterior reconhecimento dos poderes salvadores, curativos, expiatórios da vítima, responsável por “ao menos um momento de paz e silêncio” (Girard, 2000, p. 92), e abre caminho para sua divinização.
A unanimidade é efêmera; deve ser, portanto, refeita periodicamente através de repetições agora intencionais e planejadas do espontâneo e arbitrário linchamento primordial, práticas profiláticas, por assim dizer, de prevenção à violência recíproca. É onde Girard vê a origem não só do sacrifício como também de qualquer ritual e, de forma ainda mais ampla, da religião e do sagrado como um todo: "o domínio do preventivo é primordialmente o domínio religioso (...). O religioso primitivo domestica a violência, regulando-a, ordenando-a e canalizando-a para utilizá-la contra qualquer forma de violência propriamente intolerável" (Girard, 1990 [1972], pp. 32-33).
Contra o eventual retorno da crise, desenvolve-se aos poucos todo um saber fazer sacrificial, na escolha das vítimas, por exemplo, onde o autor identifica marcas vitimárias recorrentes que seguem toda uma lógica própria, assim como um corpo crescente de narrativas que trabalha, em variados graus de inconsciência, reforçando a crença em uma causa única para o mal-estar coletivo.
Girard chama estas narrativas de textos de perseguição, aqueles que veiculam representações persecutórias, "o imaginário específico de homens com sede de violência" (Girard, 2004 [1982], p. 13). Tais representações comparecem nos mitos, de forma ainda bem clara e indisfarçadamente alucinatória, através dos monstros, mas também são reconhecíveis, por exemplo, na figura do transgressor, o portador da hybris, nas tragédias gregas. A linhagem de tais representações é extensa e não é difícil encontrar seus ecos nos discursos mais contemporâneos.
De forma geral a concepção de René Girard diz respeito ao macrocosmo das coletividades e da História, e se volta especialmente para a filogênese do mecanismo expiatório e seus desdobramentos sócio-históricos. Mas também constitui um arcabouço teórico valioso e um ponto de partida privilegiado para a investigação da microcósmica psicodinâmica da expiação, tema que me é caro. Amanhã entraremos em mais detalhes sobre o pilar fundamental de sua obra - o conceito de desejo mimético.
Referências:
GIRARD, R. (2000) Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
___________ (1982) O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
___________ (1972) A violência e o sagrado. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.
___________ (1982) O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
___________ (1972) A violência e o sagrado. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.
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