domingo, 11 de dezembro de 2011

Finde didático: Girard (2)

As idéias de Girard que dialogam mais diretamente com a psicanálise - ou ao menos com a metapsicologia -talvez sejam as que se referem ao estatuto e caráter do desejo nas relações humanas. Afastando-se do senso comum que privilegia o objeto como elemento determinante do desejo, Girard denuncia a arbitrariedade de sua eleição e introduz um terceiro termo na relação sujeito-objeto ao qual dá primazia: o rival, que não meramente “deseja o mesmo objeto que o sujeito” (Girard, 1990 [1972], p. 184), mas sim designa o objeto ao sujeito como desejável simplesmente porque ele próprio o deseja.

O homem deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o quê, pois é o ser que ele deseja, um ser do qual se sente privado e do qual algum outro parece-lhe ser dotado. O sujeito espera que este outro diga-lhe o que é necessário desejar para adquirir este ser (Ibid., p. 184).

O rival, pois, é um outro percebido como mais pleno, “aparentemente já dotado de um ser superior” (Ibid., p. 184), e que, no entanto, deseja. O que um outro superior em plenitude deseja só pode ser algo “sumamente desejável” (Ibid., p. 184), e assim o desejo do rival torna-se o modelo de desejo para o sujeito que não sabe exatamente o que desejar, apesar de desejar intensamente. Disto decorre que o desejo é essencialmente mimético, imitativo, e que todo modelo é desde sempre rival, todo modelo é ao mesmo tempo obstáculo. Não é o valor do objeto que provoca a rivalidade, mas é a rivalidade que cria e valoriza o objeto.

Desnecessário dizer que o desejo do próprio modelo na verdade também é mimético – o modelo também tem um modelo, por assim dizer – e que a posição de imitador (Girard a chama posição de discípulo) “é a única essencial. É por meio dela que deve ser definida a situação humana fundamental” (Ibid., p. 185).

As origens do mimetismo serão buscadas na infância, onde, segundo o autor, o caráter mimético do desejo é mais evidente e “universalmente reconhecido” (Ibid., p. 184). A criança é o discípulo por excelência e os adultos significativos os modelos-obstáculos naturais. “As crianças não sabem o que desejar e têm necessidade de que se lhes ensine” (Girard, 2004 [1982], p. 173). A demanda que a criança dirige ao adulto, pois, é a de suplência “não a uma falta que seria o desejo, mas à falta do próprio desejo” (Ibid., p. 174). (1)

Ocorre que a criança é especialmente vulnerável às conseqüências desastrosas de seu mimetismo: elegendo o adulto como modelo, encontra nele também um obstáculo intransponível. Precipitando-se com avidez em direção ao objeto do desejo que imita, encontra invariavelmente a “violência do desejo adverso” (Girard, 1990 [1972], p. 187), o "não!" do modelo-obstáculo, diante do qual é impotente. 

Mais impactante e decisivo nas primeiras experiências do que o objeto nunca realmente encontrado, o terceiro termo da estrutura do desejo, o rival ou modelo-obstáculo terminará por tornar-se o elemento principal da dinâmica desejante.

Sempre não encontrando mais que obstáculos em seu caminho, ele [o desejo] os incorpora à sua visão do desejável e os faz passar para o primeiro plano; ele não pode mais desejar sem eles; ele os cultiva com avidez. É assim que ele se torna paixão odiosa do obstáculo (Girard, 2004 [1982], pp. 175-176).
Já havia esboçado aqui uma aplicação destas idéias à abordagem do futebol como fenômeno cultural, em particular acerca da violência entre torcidas, que ronda o esporte desde que me entendo por gente; talvez agora tais considerações estejam mais permeáveis.

Voltaremos a Girard, certamente, mas para saber mais sobre o autor a dica desde já é a Biblioteca René Girard, da É Realizações Editora. Bom domingo e até!

Notas:
(1) Adiantando um possível diálogo com a psicanálise, que podemos e provavelmente iremos promover eventualmente aqui, note-se a semelhança destas idéias com a noção da arbitrariedade do objeto da pulsão em Freud, bem como a de insaciabilidade do amor infantil, ambas já abordadas de passagem no blog. E, ainda, já me foi sugerido que a concepção do desejo mimético se aproxima muito das considerações de Lacan sobre a dinâmica especular durante o estádio do espelho.

Referências:
GIRARD, R. (1982) O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
___________ (1972) A violência e o sagrado. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1990.

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