Sexta-feira eu falava nas capturas identitárias que rondam o tema da sexualidade. Em especial, como a luta política por cidadania e direitos nesse campo pode estar dando um tiro no pé ao ratificar distinções qualitativas que delimitam grupos humanos distintos com base tão somente na configuração de sua sexualidade (ou mesmo parte dela). Isso porque, no âmbito científico, estas manobras são históricas e, desde pelo menos o Século XIX, de um Krafft-Ebing, só produziram, à revelia inclusive das boas e clínicas intenções que seus proponentes pudessem ter, discursos e práticas segregacionistas e patologizantes.
A identidade sexual nasce, assim, como diagnóstico; e mesmo quando assumida e tornada bandeira na luta pela promoção de diversidade e tolerância, não deixa de fazer um desserviço ao ratificar - no movimento mesmo em que delimita seus contornos - o campo, mítico, ao qual faz contraste: a saber, a "normalidade".
Durante o fim-de-semana esbarrei com um vídeo - já antigo - que causou arrepios na espinha mesmo de quem, como eu, não leu ainda tanto Foucault quanto gostaria. Pois ilustra bem o que estamos discutindo em outro tema tradicionalmente assombrado pelas capturas identitárias patologizantes, a saúde mental. O vídeo, que vocês podem ver aqui, flagra, a meu ver, de forma especialmente clara (talvez por ser destinado a crianças) o preço que se paga - ou a trincheira que se cava - quando dependemos da reificação de identidades para colocar em ação nossas boas intenções de promoção de tolerância.
André foi um personagem criado especificamente para a conscientização sobre o autismo, e os vídeos refletem esta peculiaridade ao retratarem-no como mero suporte ou centro organizador (paradoxalmente externo) do discurso informativo de terceiros a seu respeito, ou melhor, a respeito da identidade em que o enquadram. É claro que o tema do autismo - talvez o da saúde mental como um todo, já que não é à toa que a Reforma Psiquiátrica de Basaglia se focou na promoção de contratualidade (denso, bem sei, mas podemos voltar a isto) - é particularmente vulnerável a discursos objetalizantes, na forma "ele (ou você) é isto". Mas não há como não desconfiar, diante de campanhas como esta, que estejamos passando da conscientização ao retorno, etimológico até, aos pré-conceitos.
E isto talvez seja uma vicissitude identitária. Voltando à sexualidade, confesso não ser tão versado na história da luta política LGBT(TT) quanto na história da apropriação médica das condutas sexuais, e provavelmente as questões que levanto ao movimento já foram propostas por gente de muito mais calibre - Judith Butler é uma que vem à mente -, mas se serve pra pensarmos, por exemplo, sobre o quanto de reatividade iatrogênica há na promoção do "orgulho" como condição da diversidade, ou sobre o essencialismo identitário que assombra um discurso libertário sob noções como a de "sair do armário", eis meus dois centavos.
Podemos passear aqui, de qualquer maneira, pelas raízes históricas da cientifização do discurso sobre a sexualidade heterodoxa. Talvez mesmo a partir de amanhã.
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