terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Sobre a idéia de perversão e suas origens


No século retrasado, a cientifização da sexualidade, na heterodoxia que lhe é própria, se constituiu na transposição de um discurso teológico, cujo objeto era o vício, para um discurso médico sobre as doenças. Foucault (2001 [1974-75]) discutiu longamente a constituição, e a cientifização, nesta época, de um personagem, que chama de "o anormal", em sua relação, por um lado, com o campo da sexualidade menos convencional e, por outro, da maldade, e este amálgama parece permear o senso comum até hoje; basta perceber o quanto ainda usamos o termo que melhor o traduz: "perversão". Se o que o termo delimita é uma nebulosa de sexualidade "anormal" e defeito moral, sua legitimidade científica e consistência conceitual vêm da psicopatologia sexual oitocentista.

Pois é também no século XIX que outro autor, Lanteri-Laura (1994 [1979]), localiza a origem da apropriação médica e patologizante das condutas sexuais que delimitou o campo da perversão. E este histórico, acredito, ainda assombra nossas teorizações da sexualidade - mesmo as psicanalíticas. O conceito de perversão, diz Lanteri-Laura, é o produto de uma aproximação entre Medicina e poder judiciário: a Medicina Legal, eminentemente psiquiátrica.

Por um lado, estes estudos da sexualidade - se é que é este seu real objeto - surgiram de uma amostragem específica, constituída por indivíduos que “vistos  por ocasião das perícias, têm condutas sexuais que constituem delitos ou crimes e foram presos” (Lanteri-Laura, 1994 [1979], p. 140). Por outro lado, a psicopatologia sexual da época estava calcada no conceito de parestesia – excitabilidade por estímulos inadequados –, que reeditava a velha noção cristã que associa o ato sexual que não visa a reprodução da espécie ao pecado (Ibid., p. 36).

O conceito de perversão, a partir de então, situou-se entre o ridículo e o monstruoso (ibid., pp. 35-45). Dado que englobava qualquer manifestação de sexualidade que fugisse, por pouco que fosse, daquela que se considerava ideal - a mesma, aliás, que Freud denunciaria um pouco mais tarde ser nada mais que uma miragem -, esta noção oitocentista, de "perversão", deu (e vem dando) o tom - jurídico, avaliativo e pejorativo - de boa parte do discurso sobre o tema.

Se é no século XIX que “o estudo supostamente científico dos comportamentos comumente tidos por perversos” (Lanteri-Laura, op. cit., p. 10) vai se transformar, “em razão do desenvolvimento das perícias judiciárias (...) num bem legítimo e inconteste da Medicina” (Ibid., p. 10), isto se deve a certos elementos históricos facilitadores – ou mesmo determinantes – desta apropriação, e eles têm uma especificidade:

Em 1830 (...) a burguesia liberal havia tomado o poder e, pouco a pouco, teve cada vez menos necessidade da ideologia libertária que antes lhe fora tão útil. A religião, em que ela não acreditava desde longa data, não podia servir-lhe para nada; e a herança do Século das Luzes não a garantia nem contra os perigos, nem contra o fascínio das singularidades mais extremas da vida sexual. Ela precisava de razões para se precaver contra elas, de razões em que pudesse confiar: o discurso médico chegou em boa hora (Ibid., p. 28).

Portanto, o flerte entre Psiquiatria e Direito em que se constitui a Medicina Legal é herdeiro direto da falta que a influência coercitiva e inibitória da Igreja fazia à burguesia iluminista que ascendera ao poder. Consequentemente, o conceito científico de perversão nasce de um conjunto institucional que responde ao perigo. Perverso é o indivíduo “perigoso, isto é, nem exatamente doente nem propriamente criminoso” (Foucault, 2001 [1974-75], p. 43). O pólo judiciário deste conjunto, o das instituições punitivas, faz com que o discurso médico-legal se organize, em parte, em torno do problema do perigo social, sendo, assim, “discurso do medo, um discurso que terá por função detectar o perigo e opor-se a ele” (Ibid., p. 44).

Para aí foram arrastadas, assim, as discussões e teorizações da sexualidade. Como testemunha da força que o amálgama sexualidade/perigo exerce, eis um jurista, no início da década de 1960, tentando desbastá-lo:

Contrariamente à opinião pública,  nem todos os delinqüentes sexuais são perigosos. Muitos são exibicionistas, espreitadores ou homossexuais não-agressivos, cuja conduta é classificada mais exatamente como aborrecimentos que como perigo para o povo (Caprio, 1967 [1961], p. 9). 

Como sempre, as intenções são as melhores, mas se Caprio considerava um avanço que se passasse a ver os "homossexuais não-agressivos" como meros "aborrecimentos" há não mais que 50 anos atrás, isto é sinal de que a discussão ainda estava calcada nos fundamentos errados - a saber, os oitocentistas, anteriores, por exemplo, a Freud e à verdadeira revolução que propôs, com variados graus de sucesso, na abordagem do tema.

Em seguida examinaremos mais de perto as características do discurso médico e legal do século retrasado sobre a "psicopatologia sexual", através dos relatos de caso do seu mais famoso expoente, Krafft-Ebing.

Referências:
CAPRIO, F.S. (1961) Conduta Sexual. São Paulo: IBRASA, 1967.

FOUCAULT, M. (1974-1975) Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LANTERI-LAURA, G. (1979)  Leitura das Perversões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.



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