quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Perversão e perversidade


As histórias de caso descritas por Krafft-Ebing (2000 [1886]) – psiquiatra alemão oitocentista – demonstram indícios da conjunção histórica entre Medicina e Poder Judiciário, e de sua influência nas características do discurso que organiza o conceito de perversão. De fato, os casos clínicos que relatou tornaram-se verdadeiros paradigmas de tipos específicos de perversões.

O termo em si, ‘perversão’, aparece em seu discurso para caracterizar o que constitui um conjunto de excitabilidades qualitativamente inadequadas. Fora do eixo quantitativo, onde se delimitam as anestesias e as hiperestesias, as maneiras perversas de manifestar a sexualidade serão agregadas sob o termo ‘parestesias’, e sua inadequação será justificada em função da preservação da espécie. Assim, Ebing “situa antecipadamente o problema em referência à procriação, tomada como norma” (Lanteri-Laura, 1994 [1979], p. 26). 

Na descrição e batismo dos casos clínicos, no entanto, percebe-se que a referência à genitalidade não dá conta sozinha de explicar a lógica de delimitação do campo em estudo. Significativamente, por exemplo, o único caso, entre os 238 descritos, que merece o mais amplo e inespecífico diagnóstico de ‘perversão’ não se apresenta em contradição à procriação, e nem mesmo à genitalidade:

Um de meus pacientes (...) casado com uma mulher extremamente bela (...) ficava impotente quando via sua pele alva (...). Mas, no isolamento de um passeio com ela pelo campo, acontecia de ele subitamente forçá-la ao coito no meio da campina ou atrás de um arbusto. Quanto mais ela se recusasse mais excitado ele ficava, com plena potência (...). Mas em casa, na sua própria cama, era totalmente destituído de desejo (Krafft-Ebing, 2000 [1886], p. 21).

Por que este paciente, entre tantos, mereceu o mero e suficiente diagnóstico de ‘perversão’? O que nele se apresenta como a essência do campo da perversão, já que não é um desvio nem quanto à genitalidade nem quanto à procriação? Não nos ajuda, tampouco, o recurso à dimensão quantitativa: a impotência neste caso não é uma simples anestesia, já que depende de circunstâncias bastante específicas. Como havia reservado a qualidade de ‘perversas’ às excitabilidades suscitadas por estímulos inadequados, Krafft-Ebing se depararia aqui com a impossível tarefa de argumentar cientificamente pela adequação do estímulo ‘cama’ e a inadequação do estímulo ‘passeio pelo campo’.

É claro que o problema é outro: o que se insinua, através do  forçar ao coito e do fato de a resistência da vítima acentuar a excitação, é a dimensão bizarra quanto à sexualidade ideal que dá consistência conceitual ao diagnóstico de perversão; trata-se, na verdade, de sexualidade estranha - com direito às conotações freudianas do termo. No entanto, mais que isso, como a especificidade do caso é o uso da força e o prazer em subjugar, o diagnóstico sugere que a crueldade era tomada como sintoma decisivo, o que alça o sadismo ao posto de perversão paradigmática. E se neste caso específico ele aparece mitigado, quase risível, é bom lembrar que o ridículo rondava, junto com a monstruosidade, estas teorizações da sexualidade, e que em outros casos - agrupados sob a mesma idéia geral, a de perversão - a mesma estranheza tornava-se ainda mais freudiana ao adquirir os tons do sinistro: nos casos que Ebing diagnostica como "mania homicida", ou "assassinato por luxúria", por exemplo.

Nestes últimos, 13 no total, chega a ser difícil perceber o que há de luxúria nos assassinatos descritos. No caso 17, aliás, o de Jack, o Estripador, Krafft-Ebing admite que "nada indica que ele mantivesse relações sexuais com suas vítimas, mas é muito provável que o ato homicida e a subseqüente mutilação dos cadáveres fossem equivalentes do ato sexual" (Krafft-Ebing, op. cit., p. 23). É interessante perceber que uma ampliação da noção de sexualidade, tão combatida quando proposta um pouco mais tarde por Freud de forma muito mais detalhada, extensa e consistente, já está antecipada aqui sem maiores explicações, e não se constitui como um problema. A diferença é, há que se perceber, tão sutil quanto decisiva. A intuição de Krafft-Ebing incluía o assassino entre os desviantes sexuais para tornar a infração uma categoria diagnóstica, ao custo de uma vinculação confusa com a sexualidade não-genital. 

A impressão é que o sexual como entendido então, na maioria dos casos, é mero coadjuvante, e o mais importante acaba sendo a delimitação de um campo de anormalidade moral. Um campo médico, pois sexual, mas difuso o suficiente para que a Medicina pudesse tomar como objeto terapêutico, entre outros, qualquer tipo de infração legal - e assim garantir um lugar para o médico no poder judiciário, como perito -, mas apenas restrito o suficiente para que se diferenciasse decisivamente de seu oposto, o campo da normalidade, e assim o preservasse. 

Assim, a noção científica de perversão nasceu baseada numa heterogeneidade empírica muito grande. Os casos de Krafft-Ebing vão da "bolinagem" ao assassinato, e da "homossexualidade” ao “canibalismo”. Já não se sabe, então, se estamos falando de perversão ou de perversidade, o que é muito natural e provavelmente inevitável, dada a etimologia idêntica dos dois vocábulos. Como lembra Davidson (2004, p. 23), aluno de Foucault, todos os psiquiatras da época, inclusive Krafft-Ebing, reconheciam a distinção entre perversão e perversidade, associando a primeira a uma doença e a segunda a uma questão moral que escapava ao âmbito da Medicina. No entanto reconheciam também que era freqüentemente difícil distinguir as duas coisas. Eu diria, na verdade, que era impossível, já que a incoerência da Medicina Legal oitocentista residiu em sua relação ambígua com o discurso religioso que a precedeu: numa teorização que se baseia, acriticamente, num pressuposto moral, teológico e teleológico - a procriação como fim normal e natural da sexualidade - perversão e perversidade são, de fato, sinônimos. Aliás, acredito que o conceito de perversão tenha nisso sua essência - um recorte moralista da sexualidade - e só opere e tenha alguma utilidade num campo que, mesmo sem o saber, ratifique tais pressupostos. É uma questão à Psicanálise - que ainda utiliza o termo.

Referências:

DAVIDSON, A. The emergence of sexuality: historical epistemology and the formation of concepts. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

KRAFFT-EBING, R. V. (1886) Psychopathia Sexualis: as histórias de caso. São Paulo: Martins Fontes, 2000. A obra completa está disponível como ebook grátis no site da Kobo: 
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LANTERI-LAURA, G. (1979) Leitura das Perversões: história de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

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