Mencionei ontem que as origens científicas do conceito de perversão colocam uma questão a uma parte da teorização psicanalítica (a que ainda o ratifica, de uma forma ou de outra), dados os elos teológicos implícitos e jurídicos explícitos que tais teorizações oitocentistas tinham. Para ser nítido, uma das possíveis definições de perversão na psicanálise contemporânea
baseia-se na salvaguarda da genitalidade como elemento definidor do que seria
sexualidade normal, e, no sentido moral, desejável.
É o tipo de leitura que faz, por
exemplo, Chasseguet-Smirgel (1991) em Ética e estética da perversão. A autora
defende que a “tentação perversa” (Chasseguet-Smirgel, 1991, p. 104) é “considerar os desejos e satisfações pré-genitais (...) como tão válidos ou mesmo mais
válidos do que os desejos e satisfações genitais” (Ibid., p. 104). Ou
ainda, que “realmente, o perverso (...) vive na ilusão de que a pré-genitalidade é
igual ou superior à genitalidade” (Ibid., p. 113).
Este critério de demarcação da perversão, bastante oitocentista, mostra as
conseqüências que carrega: Chasseguet-Smirgel acaba por ratificar idéias pré-freudianas ao exaltar, como parte dos “valores genitais em geral” (Ibid., p. 296), “o pênis genital do pai e seus poderes procriadores” (Ibid., pp. 295-296) e “a complementaridade genital dos sexos entre si” (Ibid., p. 296). Em
suma, a autora crê ser “muito banal e totalmente admissível” (Ibid., pp. 100-101)
que haja, “na própria base dos processos vivos, um instinto de procriação” (Ibid.,
p. 100). A recusa de tais “valores genitais”, tão simplesmente, “é
comum às perversões. É em volta dela que a perversão se organiza” (Ibid., p.
296).
Em Freud, no entanto, as coisas não são tão simples. A obra principal sobre
o assunto, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1996 [1905]), continuou a
ser revisada até 1920, e notas acrescentadas até 1924. Forma, assim, um panorama
diacrônico privilegiado.
Os ensaios retratam, mesmo com os acréscimos posteriores, um Freud ainda
às voltas com a sexologia oitocentista – não faltam referências ao "alvo sexual
normal", por exemplo –, mas o primeiro ensaio é também o texto onde o autor
marca diferenças decisivas em relação a seus predecessores. A impressão – comum em Freud – é a de que se está lendo um diálogo, e aqui um de seus
interlocutores é justamente Krafft-Ebing (Freud, 1996 [1905], p. 128, nota 1), de quem falei ontem. Este
contexto resulta em que o vocabulário utilizado pareça hoje estar em certo
contraste com a argumentação e as idéias que encerra. É neste vocabulário que
incluo não só o termo ‘aberrações’ como também ‘desvios’ e... ‘perversões’.
Proponho, então, que nos próximos dias façamos uma leitura dos ensaios, em particular o primeiro deles, onde Freud discute a perversão e se situa em relação às teorizações oitocentistas que vimos examinando.
Referências:
CHASSEGUET-SMIRGEL, J. Ética e estética da perversão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Disponível como ebook em inglês (Three Contributions to the Theory of Sex) no site da Kobo: 
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