As angústias persecutórias eventualmente forçarão a criança a deslocar seu interesse da mãe para o resto do mundo a seu redor, para onde, no entanto, carregará as fantasias, atualizando-as. Este é o rudimento da formação de símbolos, para o qual é necessária uma quantidade ótima de angústia: se for excessiva, instigará defesas mais radicais, como a negação do interesse pela mãe, que a partir disto não tem como ser simbolizado em outras relações.
Um exemplo deste deslocamento surge com a analidade, que introduz um novo símbolo para estas “imagos internas punitivas e terrificantes” (Segal, 1975, p. 17) – as fezes – bem como atualiza o suporte das estratégias psíquicas para lidar com elas – retenção e ejeção. A retaliação fantasiada dos objetos desloca-se da fantasmagoria oral da violência para a fantasmagoria do envenenamento. Aqui Klein localiza o “ponto de fixação da paranóia” (Klein, 1996 [1930], p. 264).
Um dos suportes mais importantes de um deslocamento deste tipo é o objeto de desejo da mãe (tipicamente o pai), à medida que a criança vai sendo emancipada do corpo materno e à medida que a mãe vai sendo percebida como faltosa. A partir desta emancipação a projeção da agressividade da criança pode dar origem à “experiência da cena primária como um acontecimento sádico e terrificante” (Segal, loc. cit.).
É quando as “figuras más” (Ibid., p. 17) se engancham nos pais como casal que elas começam a apresentar as feições do supereu edípico: é, aliás, a partir disto que se desenvolve o complexo, cujos estágios iniciais Klein localiza em um período bem anterior ao indicado por Freud, um período ainda dominado pelo sadismo oral, tão precoce quanto o “segundo trimestre do primeiro ano de vida” (Klein, 1991 [1958], p. 273).
O desejo erótico pela mãe ou pelo pai não basta para explicar o desespero com que a criança os procura: ocorre que suas pessoas reais são sempre bem menos terríveis que suas representações psíquicas sádico-orais. Por mais negligentes ou mesmo cruéis que os cuidadores reais possam ser, eles nunca poderão competir com o horror proveniente da pura pulsionalidade de morte da criança, que tinge seus representantes psíquicos. São, no mínimo, minimamente intermitentes, posto que externos. O contato com pessoas reais, quaisquer que sejam, permite que o bebê teste seu mundo interno através das evidências oriundas do mundo externo.
Ao serem internalizados, os acontecimentos, as pessoas, as coisas e as situações (...) tornam-se inacessíveis à observação e juízo preciso da criança, não podendo ser verificados pelos meios de percepção disponíveis em relação ao mundo tangível dos objetos. As dúvidas, incertezas e [angústias] que surgem como conseqüência disso agem como incentivo contínuo para que a criança pequena observe e se certifique do mundo externo dos objetos que dá origem a esse mundo interno (Id., 1996 [1940], p. 389).
Portanto, ao lado do ciúme conseqüente da ancoragem libidinal na mãe – ancoragem que Freud valorizara e que aparece em Klein também como intenção de reparar na realidade o “dano feito em fantasia” (Segal, 1975, p. 18) – há, na origem do complexo, uma espécie de anseio por um rival objetivo, mais realista. Klein (1996 [1929], p. 245) aproxima este anseio da idéia de necessidade de punição, que Freud (1996 [1924]) substituíra à noção mais nebulosa de um sentimento de culpa inconsciente, que por sua vez servira anteriormente (Id., 1996 [1916]) de hipótese para explicar a motivação para o crime. Se este é um motivo importante no estabelecimento do complexo de Édipo, segue-se que “o [supereu] não apenas precede o complexo de Édipo, mas também promove seu desenvolvimento” (Segal, loc. cit.).
Referências:
____. (1940) O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos. In: ____. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
____. (1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In: ____. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
____. (1929) Situações de ansiedade infantil refletidas em uma obra de arte e no impulso criativo. In: ____. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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