terça-feira, 7 de agosto de 2012

Masoquismo moral e criminalidade

Vida y destino, por Jesús Rodríguez.

Se houve um conceito freudiano com o qual esbarrei recorrentemente durante o estudo dos temas que mais me atraem foi o de masoquismo moral. Tenho uma vaga noção de que poderia ser decisivo numa abordagem psicanalítica dos fenômenos que Girard chama de expiatórios, por exemplo, e isso tanto para a clínica do sujeito quanto a da cultura. De que se trata, então?


O masoquismo moral é apresentado por Freud em O problema econômico do masoquismo, de 1924, como um desdobramento do masoquismo erógeno, sexual, caricato, aquele que vem à mente quando pensamos em (sado-)masoquismo. Se o masoquismo erógeno é uma "condição imposta à excitação sexual" (Freud, 1996 [1924], p. 179), o masoquismo moral, que se configura, de forma mais genérica, "como norma de comportamento” (Ibid., p. 179), é seu herdeiro direto. E seu mais refinado disfarce.

O que leva Freud a inferir esta modalidade dessexualizada de masoquismo é a inadvertida insistência de alguns de seus analisandos em normas de comportamento auto-sabotadoras, manifestadas no processo de análise por coisas tão básicas quanto resistências à cura e adesividade a satisfações sintomáticas; o próprio lucro envolvido na enfermidade seria, pois, uma manifestação masoquista.  

É também instrutivo descobrir, contrariamente a toda teoria e expectativa, que uma neurose que desafiou todo esforço terapêutico pode desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um casamento infeliz, perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica perigosa. Em tais casos, uma forma de sofrimento foi substituída por outra e vemos que tudo quanto importava era a possibilidade de manter um determinado grau de sofrimento (Ibid., pp. 183-184). 

Para além do enquadre analítico, portanto, o masoquismo moral pode ser o que fomenta a recorrência do fracasso na vida de um sujeito, sendo um indicador de sua influência o fato do sujeito interpretar o fracasso como obra do “poder sombrio do Destino” (Ibid., p. 185). Pois no masoquismo moral, o Destino, “a Providência, Deus, ou Deus e a Natureza” (Ibid., p. 186) substituíram-se ao parceiro (sádico) do masoquista caricato, erógeno. E ambos - Destino e parceiro sádico - substituem-se ao que foi, no contexto edipiano, o pai, suposto agente da castração. 

o masoquismo cria uma tentação a efetuar ações ‘pecaminosas’, que devem ser expiadas pelas censuras da consciência sádica (...) ou pelo castigo do grande poder parental do Destino. A fim de provocar a punição deste último representante dos pais, o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência real (Ibid., p. 187). 
Há muito a aprofundar aqui sobre o masoquismo erógeno, que subjaz ao moral, em sua articulação, em especial, com o complexo de Édipo; as raízes edípicas do masoquismo, digamos assim. No entanto, o que me chama a atenção, desde já, é a ideia de uma insuspeitada moral masoquista que nos reza: "sofra!", e que pode nos levar, sem o sabermos, a ansiar por um algoz. Seja ele impessoal e dessexualizado, como um destino infeliz, ou encarnado em um monstro cotidiano qualquer que nos desperte o pavor.

Ou ainda, aí que está, um algoz configurado como uma turba de linchadores, uma cadeira elétrica, injeção letal ou grades de uma cela. Pois se há algo que liga a inofensiva (será?) fobia neurótica da criminalidade ao hediondo e desumano (será?) ímpeto à crueldade transgressora, é o masoquismo moral. Ambos, aliás - vale dizer em época de eleição e debates sobre segurança pública, direitos humanos e medidas repressivas e punitivas -, reflexos do excesso, e não falta, de supereu.

Intrigados com as implicações disso para a criminologia? E com a perspectiva, quem sabe, de uma clínica psicanalítica da cultura convergente à defesa - laica, por sinal - dos direitos humanos? Eu fico.

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