Foto por Alexandre R. Costa. |
Thomas Szasz dizia que uma grande vantagem do profissional psi é ser seu próprio instrumento de trabalho. Sua perícia, na escuta e nas intervenções, independe de aparelhos, objetos cristalizadores de técnicas, reificadores de saberes. Ouvir, refletir, devolver, apontar, questionar; nada disso exige, por exemplo, um estetoscópio. Nem mesmo, aliás, um divã. Eu concordo, mas para minha infelicidade, pois isso me coloca hoje à margem da identidade profissional psi hegemônica, eminentemente fetichista.
Uma estorinha: uma vez me candidatei a uma vaga de emprego na área de recrutamento e seleção de uma empresa. Meu currículo foi recebido e selecionado, mas a segunda fase do processo seletivo - conduzido por psicólogos? Às vezes prefiro não saber - exigia que os candidatos apresentassem comprovação de que haviam feito algum curso de testagem psicológica nos últimos dois anos. Argumentei que havia, durante a graduação, estudado, durante vários semestres, técnicas e instrumentos de testagem, psicometria, ética, fundamentos e aplicações dos testes, &c. Vocês bem sabem, leitoras(es), que qualquer formação em Psicologia que faça jus ao nome inclui tais conteúdos. "Tenho ainda" - prossegui - "experiência na aplicação ambulatorial de testes psicológicos, como parte de um trabalho multiprofissional integrado em saúde".
Mas a selecionadora foi taxativa. A empresa só contratava quem tivesse feito um cursinho recente no assunto, qualquer que fosse. Chegou a sugerir que ainda dava tempo de fazer um curso, pois eu só precisaria apresentar o certificado dali a um mês. Formação sólida, anos de prática, doutoramento, nada disso interessava sem um cursinho de três semanas em testes psicológicos.
A estória fala muito sobre muita coisa - é certamente candidata a anedota sobre as piores práticas em R&S -, mas uma das coisas mais profundas que aponta, creio, é a fetichização de nossa identidade profissional. Pois parece que o que querem saber nossos contratantes é se sabemos pilotar fetiches; se somos, nós, na verdade, instrumentos adequados - engrenagens lubrificadas - do sujeito suposto da prática psicológica: os testes.
Se tivermos em mente que o mercado de trabalho em Psicologia atualmente se compõe, quase exclusivamente, de oportunidades ligadas à Psicologia organizacional - vos convido, em especial os estudantes, a fazer uma busca por "Psicologia" em qualquer site de empregos -, especificamente em R&S, aliás, área tradicionalmente utilizadora da testagem psicológica, entenderemos porque o Conselho Federal de Psicologia anda defendendo a ferro e fogo - com práticas limítrofes à censura - o direito da categoria à exclusividade na aplicação da vontade do totem-ops, quero dizer, aplicação dos testes. Mas entender - e lamentar a conjuntura de mercado que a isso leva - é diferente de receber tais iniciativas - desesperadas - com fogos de artifício, o que parece ser a norma entre nós.
Proteger a exclusividade na aplicação de testes é proteger nosso fazer? Uma vitória para a categoria? De que fazer instrumental e de que categoria dependente da reificação do saber estamos falando, caros colegas? Se nossos brinquedos estão sendo dissecados e divulgados por aí, em plena era da informação e da transparência, por que isso nos ameaça tanto? Será que chegamos a este nível de dependência? Aceitaremos o sucateamento de nossa profissão, nos agarrando ao fetiche que nos legitima, ao fascínio que a papelada e o tratamento estatístico provoca nos leigos? É pouco demais, meus caros. É baixa auto-estima, não é assim que se diz?
Se o mercado não nos contrata senão, por obrigação legal, como sacerdotes dos segredos sagrados da testagem psicológica, prefiro torcer para que tais segredos sejam cada vez mais revelados, banalizados e utilizados por leigos ou não, selecionadores e selecionandos, até que o paroxismo dessa fetichização desabe sobre si própria e consigamos resgatar a dignidade de nosso saber e nosso fazer, de tão densa tessitura. Muito mais espessa, enfim, que qualquer pedaço de papel, seja ele validado ou não pelo Conselho.
Bourdieu diria: "cuidado pra não superestimar a realidade dos modelos da realidade". Tarde demais, meu caro, tarde demais; criamos um monstro, e parece que só nos resta brigar por sua guarda na justiça.
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