sábado, 28 de julho de 2012

O coringa

Foto por Andressa Sipariba.
Estou curioso a respeito de James E. Holmes. Para quem não sabe, o rapaz que abriu fogo contra uma platéia de cinema recentemente no Colorado, EUA. Mas talvez minha curiosidade não transite pelos caminhos mais comuns, e isto me motivou a escrever algo a respeito. Pois se a necessidade de explicações nos é comum, e bastante justificável, o caminho que damos à curiosidade pode produzir explicações mais, ou menos, desumanizadoras. Mais que isso, explicações mais, ou menos, produtivas.


O incidente reacendeu, por exemplo, o debate sobre porte de armas nos Estados Unidos. Mas o desarmamento, parece-me, não atacaria em nada as causas da tragédia, do desespero que leva um sujeito a atentar contra a vida de estranhos. A não ser, claro, que estejamos pressupondo que James é qualitativamente diferente de nós, um "tipo" de pessoa que não pode ter acesso a armas (1).

O que nos leva à reação dos nossos colegas. Não sei o quão representativa é, mas a única curiosidade que colhi entre os profissionais psi (de uma psicanalista, aliás) era diagnóstica. A presteza a rotular James, ainda mais entre nós, como é eloquente... será que ele é psicótico? Borderline? Perverso? De que forma, através de que detalhes mesquinhos ele é absolutamente diferente de nós, normais, ou, no máximo, pobres neuróticos? Somos profissionais da saúde mental, afinal. Precisamos, mais que ninguém, nos defender dos rótulos que nós mesmos legitimamos. Não podemos, em hipótese alguma, nos identificar com James. Pegaria mal, isso.

Desculpem o sarcasmo, mas isso me entristece. Ora, pois é assim que ratificamos a intolerância e o segregacionismo. Chegamos, nisso, a ser quase tão iatrogênicos quanto os moralistas de plantão, pois estes últimos, se andam pegando pra Cristo (no pun intended) os suspeitos usuais - filmes e videogames violentos; "abaixo a sublimação!", parecem gritar alguns colegas -, de forma absolutamente equivocada, claro, pelo menos intuem que a tragédia tem o potencial de nos apontar algo a respeito, não de Holmes, mas de nosso ambiente. Basta o esforço de ouvir.

"Suficientes". E "personalidade". De nada.

Mas, enfim, me interessa menos a política de porte de armas, o zodíaco empobrecido que são nossos diagnósticos e o moralismo anti-sublimatório e desmentidor da pulsionalidade de morte, e mais as condições sociais e simbólicas que potencializam o mal-estar de um de nós a ponto de precipitá-lo do desespero ao massacre.

Pra ser poético, James tentou gritar, como o coringa, mesmo, de um baralho: a carta que pertence e não pertence, ao mesmo tempo; aquele que não tem naipe. É desta posição que pôde tentar assinalar algo, sobre si, claro, mas sobre nós também, sobre o sofrimento que perpassa ases, setes, reis e rainhas. Tentemos ouvi-lo.

A notícia mais interessante que pesquei até agora foi uma análise do ambiente acadêmico que James frequentava, competitivo, promotor de isolamento e, aposto, baseado em ameaças difusas e onipresentes de humilhação pública diante dos pares. Pra quem lê inglês, recomendo. E quem já frequentou um departamento de pós-graduação que dê seu depoimento. Mas ainda é pouco, e independente do aspecto ambiental que prefiramos interrogar, as explicações que dirigem nossa curiosidade a este tipo de análise, das dinâmicas e condições sociais patogênicas que perpassam nossa cultura, ainda são raras. Se vocês toparam com mais alguma por aí, mandem o link, por favor.

Estarei, assim, elegendo meu bode expiatório particular nas "dinâmicas e condições sociais"? Provavelmente. Mas como James não é um fenômeno natural, e sim um ser humano como eu, as explicações, como comecei dizendo, são a condição para que eu não precise desumanizá-lo. Que elas sejam produtivas, então, no sentido de nos impelir a uma redescrição, como diria Rorty - que preciso apresentar em breve, pois ando citando-o bastante -, uma redescrição das condições simbólicas que nos impomos como humanos, na esperança renovada de construirmos, aos trancos e barrancos, um mundo mais suportável. Em suma, para evitar os massacres, só um mundo menos massacrante.

Isso, aliás, é feito, por exemplo, no livro coordenado por Foucault sobre Pierre Rivière. Não sei se será nosso próximo tema, mas continuo pretendendo escrever algo a respeito.

Bom fim-de-semana, caras e caros, até!

Nota:

(1) Vale lembrar que a legislação americana já proíbe o porte a pessoas que já tenham sido internadas em uma instituição de saúde mental. Já está em vigor, pois, antes de qualquer debate, esta tipificação, muito familiar a Foucault e Basaglia, que casa loucura com periculosidade.

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