quarta-feira, 25 de julho de 2012

Sobre o ciúme "competitivo"

Jealousy ("ciúme"), por Olivier Thereaux
Em um texto de 1922, chamado Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo, Freud distingue três tipos de ciúme: o competitivo, o projetado e o delirante. Sobre o primeiro ele escreve que "não há muito a dizer, do ponto de vista analítico", mas talvez hoje em dia, depois que suas ideias, mais bombásticas, sobre os outros dois tipos já deixaram de ser novidade e estão razoavelmente assimiladas culturalmente, valha a pena retomarmos em algum detalhe o campo do ciúme que Freud chama de "normal".


O ciúme competitivo, diz Freud, é o simples "sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado". Por corriqueiro e justificável que seja, no entanto, nunca é completamente racional, pois está, via de regra, "profundamente enraizado no inconsciente, (...) uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança". Pois bem, que raízes são essas?

Parece-me que no ciúme competitivo a ameaça de perda de amor é (ainda) mais determinante que a relação ambivalente com o rival. Aliás, eu o chamaria, ao invés, de ciúme reativo, ou algo assim, pois a competitividade me remete à dinâmica girardiana do modelo-obstáculo, que é característica, na verdade, não deste tipo, mas do ciúme delirante. Podemos voltar a este paralelo um dia.

Mas não, no ciúme normal não há necessariamente, ou a priori, investimento do rival, não há desejo pelo rival, nem mesmo ódio dele. O rival, no ciúme competitivo, é o próprio objeto amoroso; mais especificamente, o desejo do objeto amoroso por algo que exclua o sujeito, a esperança do objeto amoroso de substituir o sujeito e o investimento que lhe dedica por outra coisa, desinvestindo-o. O que sustenta este tipo de ciúme, talvez o mais fundamental deles, é a ameaça de desinvestimento, de abandono.

No contexto da primeira infância, o ciúme normal torna-se bem mais compreensível; o impasse que instaura, não obstante, continua sendo um desafio vida adulta adentro. Pois é fácil imaginar que um bebê se sinta ameaçado pelo abandono daquele(a) que dele cuida; nascemos prematuros e, diz Freud, desamparados. A ameaça de desinvestimento materno, por assim dizer, é, para um bebê, uma ameaça real de morte. E por mais que elaboremos esse anacronismo emocional à medida que crescemos (e à medida que nosso mundo objetal se expande), toda ameaça de perda de objeto amoroso na vida adulta reativará esses pavores arcaicos em algum grau. Ao que, se me permitem uma referência densa, alguns, como Rorty, diriam: "ainda bem!".

Mas o impasse vai além disso. Pois o investimento que lhe dedica o objeto primário, ao qual o bebê se agarra com unhas e dentes (é - ou foi - questão de vida ou morte, afinal), será tão mais exclusivo quanto mais baseado em idealização ele for. Pra ser direto, o investimento exclusivo que um bebê desamparado demanda só pode ser fornecido por uma mãe que o invista como falo, e não como sujeito. A exclusividade que o bebê pede, pois, reagindo exageradamente, e para o resto da vida, à ameaça de morte que marca seu desamparo, esta mesma exclusividade é também sua morte, desta vez psíquica. É renunciar à subjetividade, e pedir para se tornar personagem da fantasia da mãe, ou do parceiro(a). 

Agora, no entanto, como ressalva, invertamos o ônus da análise por um momento: como dizia um professor meu, "o Édipo só é triangular se a mãe for neurótica. Caso contrário, esse polígono terá muito mais lados...". O que significa dizer que, caso a mãe não seja neurótica, o bebê (e o pai, também, aliás) será apenas um dos seus muitos objetos de investimento, e nenhum destes terá que carregar a cruz de ser seu falo. Mas, eis a ressalva, não ser neurótico é, ainda - pasmem! - uma arte raríssima. Pois ter um leque amplo de investimentos objetais não exclui a possibilidade de que se o navegue de forma neurótica - em busca do falo, num nomadismo de abandonos em série e renovadas esperanças de se encontrar o objeto que nunca e em nada decepcionará.

Havemos de nos perguntar, é a moral da estória, se o ciúme que causamos não é parte inerente do jogo, neurótico, que podemos estar propondo. Se nossa flexibilidade de investimentos é realmente fruto da superação do anacronismo emocional da necessidade infantil de exclusividade, ou se, ao invés disso, é mais do mesmo - deslocamento da vã esperança de encontro com o objeto perfeito - sob frágil disfarce.

Ora, mas eis que talvez tenhamos nos reencontrado com o termo que Freud propôs para batizar este tipo corriqueiro de ciúme. Pois, em sendo este o caso, há, de fato, uma competição envolvida; não com o rival objetivo, mas com o objeto idealizado que o outro significativo abriga, com a impossível perfeição que carrega esperançoso e deposita por onde quer que seus olhos vagueiem.

Terá sido aí que os hippies tropeçaram?

Nenhum comentário:

Postar um comentário