segunda-feira, 23 de julho de 2012

O homem da areia


E. T. A. Hoffmann, auto-retrato

Dizíamos que O homem da areia, conto de E.T.A. Hoffmann, foi analisado por Freud como emblemático do tipo de fantasia, no plano fálico, que suscita a reação de estranheza, inquietude ou horror: a fantasia de feminização diante da figura paterna, que instaura um impasse entre incesto e castração. 


Natanael, o protagonista do conto, é atormentado desde criança pelos “dois opostos em que a imagem paterna é dividida pela sua ambivalência” (Freud, 1996 [1919], p. 250, nota 1). Suas relações tanto com figuras paternas ‘boas’ quanto com sua amada, Clara, são invariavelmente perturbadas pela chegada, sob vários disfarces, do ‘homem da areia’, o “pai temido, de cujas mãos é esperada a castração” (Ibid., p. 249). 

O homem da areia “aparece sempre como um perturbador do amor” (Ibid., p. 249), em primeiro lugar, aliás, do amor ao pai: no início do conto Natanael narra como a iminência de sua chegada, anunciada pela mãe, era o que marcava a hora em que, quando criança, tinha que ir dormir, separando-se da companhia agradável do pai, que pouco via durante o dia (Hoffmann, 1993, p. 114). Quando pergunta à mãe quem é o homem da areia que o separa de seu pai, já o qualificando de “malvado”, a mãe desmente sua existência: diz que significa apenas que o menino não consegue manter os olhos abertos, “como se alguém tivesse jogado areia neles” (Ibid., p. 115). Mas ele vê nisso uma negação, preferindo a explicação que a babá lhe dá, segundo a qual se trata de um homem perverso “que aparece para as crianças quando elas não querem ir dormir e joga-lhes punhados de areia nos olhos, de forma que estes saltam do rosto sangrando” (Ibid., p. 115). Esta versão diabólica da instância paterna não só sobrevive à morte de seu pai real, como é também responsabilizada por ela.

Arrancar os olhos, diz Freud, simboliza a castração: “a ameaça de ser castrado excita de modo especial uma emoção particularmente violenta e obscura, (...) é essa emoção que dá, antes de mais nada, intenso colorido à idéia de perder outros órgãos” (Freud, loc. cit.). Esta emoção, que podemos chamar de horror, deve, portanto, boa parte de sua força à intensidade dos desejos eróticos aos quais se substitui: deriva da tentação a que estamos sujeitos quando somos instados a escolher entre o gozo e a própria possibilidade de manutenção de nossa frágil unidade corporal, narcísica. Ou seja, entre aquiescermos à plenitude imaginária de um objeto não castrado, cedendo-lhe definitivamente o falo – que nos é arrancado – e gozando, na melhor das hipóteses, através do masoquismo; ou então abrirmos mão do gozo e da plenitude do objeto, contentando-nos com a falta, com o desejo, com a esperança de um dia obter o falo e com a parca satisfação narcísica que extraímos dos momentos em que um outro nos o atribui. 

Natanael, na vida adulta, esboça uma solução para este impasse ao se apaixonar por Olímpia, filha de um de seus professores e substituto do pai ‘bom’. Olímpia, diz Freud, é como um complexo dissociado do protagonista: “nada mais pode ser do que uma materialização da atitude feminina de Natanael em relação ao pai na sua infância” (Ibid., p. 250, nota 1). Este arranjo do narcisismo o poupa da castração ao mesmo tempo em que o mantém, indiretamente, numa relação incestuosa com um substituto paterno. Olímpia funciona como via para o incesto e anteparo para a angústia de castração, o elemento que evita o horror ao se interpor entre Natanael e o pai.

O conto ilustra ainda como a angústia irrompe quando esta defesa narcísica soçobra, possivelmente graças à intensificação do desejo que ela domesticava: o retorno do homem da areia, que se revela um comparsa do professor ao raptar Olímpia, é simultâneo à descoberta de que a moça era uma boneca, um autômato construído pelo professor, e cujos olhos tinham sido roubados do próprio Natanael. Desfeita a cisão do eu da qual depende a defesa, o protagonista, ao se reconhecer em Olímpia, se vê sem anteparo diante da castração e do incesto já consumados, sucumbe à loucura e, eventualmente, se suicida.

O incessante retorno do homem da areia, sob nomes e disfarces diversos, permite ainda que Freud relacione a sensação do sinistro (Unheimlich) com um conceito do qual se ocupava na época, a compulsão à repetição: “esse fator de repetição involuntária que cerca o que, de outra forma, seria bastante inocente, de uma atmosfera [sinistra], e que nos impõe a idéia de algo fatídico e inescapável” (Ibid., p. 255). A sensação de desamparo diante do sinistro e suas personificações, experimentada também em alguns estados oníricos, é, antes de tudo, portanto, a sensação de desamparo do eu diante não do mundo externo, mas do isso e do aspecto mortífero das pulsões, cuja intensidade, em última instância aniquiladora da unidade egóica, é poderosa o bastante “para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco” (Ibid., p. 256).

Há que se considerar, claro, que hoje, mais que em 1919, é necessário irmos além (ou ficarmos aquém) das fantasias falicistas que parasita(va)m as diferenças sexuais e de gênero. A atitude "feminina", em especial, só se configura desta maneira puramente negativa e causadora de horror para um sujeito que tenha se aprisionado em significações fálicas do mundo e da sexualidade. Mas acredito que Freud tenha garimpado aqui algo muito mais fundamental em termos do psiquismo humano; esta tensão entre narcisismo e gozo nos assombra a todos. E o monstro, para além do pai, para além do falo, encarna essa promessa - já a reconhecemos como tentadora? - de gozo na aniquilação de si.

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