domingo, 22 de julho de 2012

Das Unheimliche

Shadow monster ("Monstro de sombra"), de John Conway
Em seu texto O estranho, Freud (1996 [1919]) toma a reação de estranhamento como tema, através da análise do adjetivo unheimlich e sua forma substantiva, termo que, diz Freud, pertence ao discurso estético, à “teoria das qualidades do sentir” (Ibid., p. 237).

Das Unheimliche “relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador — com o que provoca medo e horror”, e com sentimentos “de repulsa e aflição” (Ibid., pp. 237-238). Quando adjetiva animais conota selvageria, indica que não são domesticados, e é aplicado a uma pessoa “quando lhe atribuímos intenções maldosas” (Ibid., p. 260). O termo tem afinidades com o latim suspectus (‘suspeito’) e, quando aplicado a pessoas, com o inglês repulsive (‘repulsivo’). Em árabe e hebreu “significa o mesmo que ‘demoníaco’, ‘horrível’” (Ibid., p. 239).

Em português a tradução padrão, ‘estranho’, não faz jus a uma série de conotações, entre elas, a sensação de estar indefeso diante do que é unheimlich por ele ser indefinível e imprevisível; a idéia de algo insidioso e sorrateiro; a idéia de algo grandioso; a idéia de algo súbito e próximo; e a idéia de algo fantasmagórico, “que torna das Unheimliche inapreensível e inefável e o dota de certa “irrealidade” ou de um “realismo fantástico”” (Hanns, 1996, p. 233). As alternativas de tradução incluem ‘lúgubre’, ‘sinistro’, ‘inquietante’ e ‘macabro’.

‘Estranho’ também adiciona uma conotação de absoluta alteridade – podendo significar ‘estrangeiro’, por exemplo –, algo bem mais ambíguo no termo alemão: este último deriva de Heim, que significa “lar” ou “casa”, mas que pode denotar, sob a forma heimlich, algo tanto familiar e conhecido quanto secreto e oculto (Ibid., pp. 231-235).

O que nos causa estranheza, então? É esta relação com o que é familiar, porém secreto, que permite a Freud valorizar a definição, proposta por Schelling, desta categoria do assustador “como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz” (Freud, op. cit., p. 258). Trata-se, claro, do ameaçador retorno de pulsões recalcadas. O sentimento de algo sinistro, de intenções maldosas e poderes secretos, permeia, por exemplo, a percepção social da loucura, na medida em que

o leigo vê nela a ação de forças previamente insuspeitadas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser. A Idade Média atribuía, com absoluta coerência, todas essas doenças à influência de demônios e, nisso, a sua psicologia era quase correta (Ibid., p. 260).

Era quase correta pois ainda marcada pelo desconhecimento do que Freud já indicara em um artigo anterior: “o diabo nada mais é do que a personificação da vida instintual inconsciente reprimida” (Id., 1996 [1908b], p. 162-163). O que nos causa estranheza e nos horroriza são nossas pulsões, mesmo quando projetadas, como sombras, em outrem. Se o louco parece estar possuído, subjugado por algo, algo, aliás, que os monstros - e seus herdeiros históricos, como o perverso e o psicopata - parecem encarnar, ambas, loucura e monstruosidade, só nos causarão estranheza, incômodo, horror, na exata medida em que este algo, tão alteritário, habitar clandestinamente nossa própria subjetividade, a despeito de nossos ideais egóicos.

No texto de 1919, Freud aborda uma configuração ainda especificamente fálica destas pulsões que despertam o horror: são remetidas à atitude feminina para com o pai, que marca um impasse entre incesto e castração. É o impasse que identifica em “O homem da areia”, de E. T. A. Hoffman, dele derivando o efeito emocional de terror que a leitura do conto suscita. Podemos discuti-lo a seguir.

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