The nightmare, 1781, de Henry Fuessli |
Estivemos discutindo a interseção entre crença em monstros, sexualidade e vida infantil (aqui, por exemplo), mas eu negligenciei o elo desta relação que talvez seja o mais importante explicitar aos leitores que não são tão familiarizados com o pensamento freudiano: o caráter sexual de nossas produções ficcionais, inferência que tem seu fundamento primeiro na conclusão freudiana de 1900, segundo a qual os sonhos são realizações (disfarçadas) de desejos (proibidos).
Pelo menos foi o que me ocorreu quando recebi a seguinte missão de um amigo e leitor:
Certamente. Minha primeira tentativa de aprofundar um pouco mais a ligação, então, será lembrá-los do título do livro de E. Jones que vem nos ajudando a pensar o tema. On the nightmare (Jones, 1971) é, afinal, essencialmente uma análise freudiana da experiência do pesadelo. Jones parte da abordagem freudiana dos sonhos como realização de desejos para identificar a influência de fantasias incestuosas egodistônicas na causação desta espécie extrema de sonho de angústia. É a partir disto que interroga a teratologia medieval e as superstições antigas, a crença em bruxas, vampiros, lobisomens e demônios. A ideia é que o monstro é um produto onírico e, como tal, marcado pelo desejo e pela sexualidade do sonhador.
O extenso exame de Jones da literatura médica a respeito dos pesadelos impressiona por evidenciar o quanto se esteve disposto a eleger causas externas, operando à maneira de corpos estranhos, diria Freud (1), para os sonhos de angústia: entre as hipóteses que buscavam dar conta de sua causa, encontramos desde “matéria incongruente do sangue” e “comida não-digerida no estômago” até “gases venenosos” e mesmo “fases da lua” (Jones, 1971, pp. 30-33). O autor nota, no prefácio à segunda edição, que tais explicações, que chama de pseudomaterialísticas, assemelham-se às explicações religiosas que atribuem os pesadelos à ação de “espíritos maus” (Ibid., p. 7), na medida em que ambas se evadem da responsabilidade pessoal do sonhador por seus desejos, e neste sentido são análogas à teoria da sedução e à etiologia traumática da histeria. No fundo, representam “defesas contra a admissão do inconsciente” (Ibid., p. 7). Em conformidade com a interpretação freudiana dos sonhos, o pesadelo será, ao invés disso, entendido como “expressão de um conflito mental” (Ibid., p. 44), de algo ao mesmo tempo “desejado e temido” (Ibid., p. 45).
Quanto mais intenso for o conflito, mais a realização onírica do desejo tende a se apresentar de forma distorcida (...). Quanto mais o desejo escapou à distorção, maior a manifestação da angústia que o acompanhará. Para Jones, o pesadelo é, entre os sonhos de angústia, aquele que é acompanhado pela mais intensa angústia. Isso o autoriza a tomá-lo como uma expressão bastante clara do conflito em torno do desejo o mais intenso: o desejo incestuoso. A experiência clínica mostra que os pesadelos, ao lado da angústia, não escondem o cunho libidinoso. Seu tema recorrente é o de um visitante noturno, um demônio obsceno que se deita sobre o sonhador para copular. A semelhança desta estrutura do pesadelo com certas alucinações eróticas, em que os pacientes se queixam de abuso por parte de figuras que são tanto atraentes quanto repelentes, não escapa ao autor (Rudge, 2005, p. 83).
Através da literatura médica, Jones caracteriza a forma mais típica de pesadelo como o terror de ser atacado por uma presença opressora e paralisante, freqüentemente uma sensação sufocadora de peso no peito aliada à de “total impotência” (Jones, op. cit., p. 22). O agente da opressão, seja um animal, um monstro, “ou mesmo um vago e indefinível ‘algo’” (Ibid., p. 46), tem sempre atributos como “força, energia, determinação” (Ibid., p. 46). Os sintomas observáveis de um pesadelo incluem sudorese e taquicardia – evidências de esforço, diz o autor (Ibid., p. 24) – e seus, digamos, efeitos colaterais ao acordar compreendem exaustão, indisposição, depressão e “fraqueza nos membros inferiores” (Ibid., p. 25).
Todos estes elementos, nota Jones, são comuns ao pesadelo e ao coito. Em especial, o autor infere, a experiência passiva do coito; as manifestações do pesadelo serão então tão mais severas, “tempestuosas e veementes” (Ibid., p. 52), quanto mais constantemente e mais intensamente recalcado for o componente masoquista da sexualidade.
O aspecto animalesco que freqüentemente assume “o objeto visto num pesadelo” (Ibid., p. 78) - que permeia o conceito, antes de mais nada, etimologicamente, pois a palavra nightmare (pesadelo) pode ser traduzida ao pé-da-letra como "égua da noite" - é relacionado ao fato de os animais satisfazerem abertamente suas necessidades sexuais. Eles tornam-se, por isso, representantes da pulsionalidade do sonhador na ambivalência que lhe é inerente, uma “combinação de luxúria com brutalidade ou crueldade” (Ibid., p. 79).
O caráter incestuoso destas fantasias, por outro lado, será abordado em mais detalhes durante a análise de cada um dos monstros específicos que os pesadelos criam. Já vimos aqui o quanto a bruxa se assemelha à figura materna, por exemplo, bem como o tom paterno-filial que o diabo encarna.
Não sei o quanto esclareci, mas vejo algumas possibilidades para continuarmos o exame do tema, o que é sempre um bom sinal; podemos, por exemplo, passear pelo texto freudiano dedicado ao 'sinistro' (Unheimlich), onde o caráter sexual da monstruosidade é abordado já de forma razoavelmente independente das experiências estritamente oníricas... que tal?
Bom fim-de-semana a todos, até a próxima!
Nota:
(1) A referência é a Esboço de
Psicanálise: “Estabelecemos assim um direito a chegar a uma
compreensão da vida normal da mente a partir do estudo de seus
distúrbios — o que não seria admissível se esses estados
patológicos, as neuroses e as psicoses, tivessem causas específicas
operando à maneira de corpos estranhos” (Freud, 1996 [1938], p.
209).
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