Marionetes, de Miquel Bohigas Costabella |
Semana passada participei de uma dinâmica de grupo na qual uma das atividades propostas era discutir a responsabilidade sobre a morte de uma mulher neste cenário aqui. Não sei o quanto a dinâmica é manjada entre selecionadores e selecionandos, tampouco o quão folclórica é a menção à revista onde o caso teria sido publicado, mas algo nas opiniões que este suscitou chamou minha atenção: o quão "mal colocado" ficou o personagem do louco no ranking de responsabilidade que nos foi proposto esboçar.
Aliás, a dinâmica envolveu profissionais de várias áreas, mas foi, para meu espanto, justamente uma colega psicóloga que justificou a pouca atribuição de responsabilidade ao louco dizendo que "ele não tem controle sobre seus atos". Ora, leitores mais atentos do N&D não hesitariam em identificar como expiatório este exercício, e especificamente, por sinal, um imperativo de atribuição de agência. É nisso, inclusive, que reside sua eficácia em mobilizar uma discussão em grupo, acredito: os rankings variam bastante, justamente por causa da indeterminação essencial do agente da situação.
Colocar então, no enunciado, o louco como o agente mais direto, imediato, da morte parece ser uma forma de capitalizar o potencial de diversidade de opiniões durante o exercício: o louco é a causa mais direta da morte, mas... ele é louco. A atribuição de agência se liberta, assim, de seu alvo natural, e passa a poder flertar com os outros personagens.
Percebe-se, então, qual o preconceito que o exercício parasita, contra o qual nós, psicólogos, deveríamos estar particularmente vacinados: aquele que encara o louco como objeto, antes de sujeito, e isso em contraste com o resto, saudável, da humanidade. Um outro participante, este felizmente administrador e não psicólogo, resumiu o pressuposto: "o louco não tem nenhuma responsabilidade; ele é como um cachorro deixado solto pelo dono".
Essa é, em suma, a verdade desumanizadora do discurso aparentemente misericordioso que alguns tecemos a respeito dos que tenham sido entendidos como psicóticos. É por isso, aliás, que a Reforma Psiquiátrica prega a retomada da imputabilidade do louco, como parte de seu tratamento. O louco tem o direito de ser tão ou tão pouco responsabilizado por seus atos quanto todas as outras pessoas.
Será que essa ideia, tão freudiana - foi o vienense, afinal, que inaugurou a possibilidade de pensarmos o delírio como uma produção (cri)ativa e cheia de intencionalidade - está em extinção nessa nossa época de explicações neurológicas e medicalização da vida? De insistente e progressiva promoção da fenda entre o sujeito e seu próprio sintoma, seu próprio desejo?
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