domingo, 15 de julho de 2012

Sobre monstros e sexualidade

Départ pour le Sabbat ("Partindo para o Sabá")
Albert Joseph Pénot, 1910
Eu dizia que a noção cristã do diabo é emblemática do tipo de projeção de monstruosidade à qual nós, humanos, somos ainda bastante afeitos. Ora, já mencionamos que é justamente entre o monstruoso e o ridículo que Lanteri-Laura situa a figura do perverso; Foucault também retraça a figura que batizou de "o anormal" à figura medieval do monstro, caracterizando-o mais precisamente como um monstro cotidiano, banalizado, um monstro pálido. Será o modo como encaramos não só os crimes sexuais, mas também a própria sexualidade heterodoxa, ainda hoje, numa sociedade dita laica, sobredeterminado por esta linhagem cultural de figuras monstruosas fantasísticas?

Na análise de Ernest Jones das superstições medievais, algumas relações entre estas crenças e a psicopatologia sexual oitocentista se evidenciam. O medo de vampiros, por exemplo, influenciou o batismo dos dois casos mais famosos de necrofilia no século XIX, que foram significativamente diagnosticados como “vampirismo” (Jones, 1971, p. 112). 

A antiguidade destas fantasias é atestada, por exemplo, pelo povo babilônico dos Caldeus, que já no século VI a.C. “acreditavam na existência de espíritos que tinham relações sexuais com os mortais durante seu sono, devoravam sua carne e sugavam seu sangue” (Ibid., p. 118), a mesma fantasia, diz Jones, que Jack, o Estripador atuaria 2.500 anos depois. O parentesco entre o monstro e o criminoso também se evidencia no tratamento tradicionalmente dedicado aos vampiros - nascidos da projeção de pulsões orais-sádicas - na intenção de trazer-lhes algum conforto e descanso após a morte – decapitação, queima do coração em óleo, esquartejamento –, que reflete intimamente, nota o autor, “a punição dada, especialmente no Oriente, a assassinos particularmente atrozes” (Ibid., p. 116).

Mas é na crença em bruxas e bruxaria, historicamente mais recente, que se evidencia o quão concretas são as consequências da personificação de fantasias sexuais inconfessáveis. Pois a crença em bruxas já concerne, sem qualquer disfarce ou mediação atenuante - tal como a noção de "possessão" atenua os efeitos expiatórios da crença no diabo -, “não seres imaginários, como as crenças em Incubi, Vampiros, Lobisomens e o Diabo faziam, mas seres humanos reais, vivos e sofredores” (Ibid., p. 190).

E a sobredeterminação da crença em bruxas pela sexualidade é particularmente explícita. É em sua relação íntima com as perversões, justamente, que a bruxaria adquire seu caráter nefasto, torna-se uma epidemia em meados do século XV e passa a justificar as atrocidades da Inquisição: as bruxas eram acusadas não só de terem relações sexuais com o diabo – o que traduz o ciúme que a criança tem da relação entre seus pais – mas também de promoverem toda espécie de ato sexual proscrito por deus durante seu Sabá, que se dizia culminar em orgias incestuosas e uma série de práticas escatológicas que envolviam excrementos humanos, sangue menstrual e pedaços de animais. As descrições do Sabá encontradas nos julgamentos de bruxas, que foram levados a cabo em inúmeras partes do mundo e às vezes até tão tarde, vejam vocês, quanto a segunda metade do século XIX (Ibid., p. 227), são predecessoras diretas dos estudos de caso de Krafft-Ebing: os processos consistiam em detalhar, diz Jones (Ibid., p. 229), os aspectos mais repelentes da sexualidade, servindo

para excitar e gratificar certas tendências humanas em suas formas mais rudes e brutas. Destas, as duas mais óbvias eram o sadismo e a curiosidade sexual. (...) Jühling salienta este ponto ainda mais severamente em conexão com a ânsia dos celibatários Inquisidores em despir, examinar e questionar suas vítimas; crianças de sete anos e mulheres de oitenta e cinco foram levadas a confessar ter fornicado com o Diabo, com todos os detalhes que acompanhavam o ato. Além disto, todo o procedimento era, como Roskoff mostrou claramente, usado extensivamente por indivíduos para descarregar sua malignidade, ódio e inveja ao acusar falsamente seus rivais ou inimigos (Ibid., p. 226).

Daí se depreende que além dos motivos políticos que a Igreja tinha para perseguir os dissidentes punindo práticas sexuais pagãs, um outro grupo de motivos para a atribuição de monstruosidade à sexualidade heterodoxa era comum ao clero e ao povo; e estes últimos motivos, pulsionais, ainda vigoram. Podemos abordá-los por vários caminhos, e certamente o faremos, mas não custa adiantar que se devem, sim, a uma espécie de inveja.

Pois quando ativistas e simpatizantes LGBTT batem na tecla de que à homofobia subjazem desejos conflituosos, estão apenas sendo extremamente freudianos. E, do alto do que valham meus anos de estudo e prática psicanalítica, também acredito que seja bem este o caso.

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