quinta-feira, 12 de julho de 2012

Figurações da angústia: o diabo (2)


Os poderes sobre-humanos do diabo correspondem à idealização que a criança faz da potência sexual de seu pai, um dos quatro elementos que Jones (1971) distingue como constituindo a encruzilhada fálico-edípica que sua figura personifica; é pai e filho, em um eixo, e admirado e odiado, em outro. 


Do primeiro aspecto, o pai admirado, deriva o caráter sedutor e tentador do diabo, além da suposição de poder e gozo pleno. O diabo é entendido como um expert em gozo; como lembra Freud, em seu texto Uma neurose demoníaca do século XVIIé típico que o benefício de um pacto com ele, em troca do qual o indivíduo oferece sua alma, seja, “acima de tudo o mais, o gozo” (Freud, 1996 [1922], p. 95).

O segundo elemento – hostilidade contra o pai – é bem mais explícito, pois o diabo é essencialmente uma figura persecutória, o inimigo declarado da humanidade.

Toda a arbitrariedade paternal, crueldade selvagem, injustiça, tirania mesquinha e falta geral de razoabilidade que desfigura o Yahweh do Antigo Testamento foram herdadas por completo pelo Diabo Cristão. A semelhança deste retrato com o que muitas crianças entendem como uma descrição exata de seus pais é bastante evidente (Jones, 1971, p. 173). 

Mas o diabo também simboliza a própria criança, no complexo Filho-Pai, em sua relação com deus; o diabo, diz Jones, imita deus como a criança imita o pai. A esta projeção da posição do filho, aliada ao ódio deste filho por suas próprias limitações, o diabo deve sua relação com a castração, expressa mais claramente em uma de suas dismorfias típicas: é freqüentemente retratado como sendo coxo.

incapacidade de andar é, entre os neuróticos, um símbolo freqüente para a impotência sexual. A crença [num diabo coxo] é, claro, altamente sobredeterminada, e tem a ver com todo tipo de idéias conectadas com o complexo de castração. Desejos de castração do Pai (Deus) estão nela contidas, enquanto por outro lado o fato do mancar ser tantas vezes o resultado de ser arremessado dos céus aponta para os medos de castração do filho, seu temor de que o pai o puna desta apropriada maneira (Jones, 1971, p. 180).

Além disso, o diabo cristão parece ser essencialmente horrendo, feio, desfigurado, e, vejam só, compósito. Suas asas de morcego, pernas de bode, chifres formam uma imagem que parece refletir a fragilidade da integração egóica, a desconjunção do eu daqueles que, desde a posição de filho, se imaginam em contraste com a figura integrada, especular, do pai-rival.

Finalmente, o diabo é inconfessavelmente admirado por personificar a esperança fálico-edípica por excelência. Em sua arrogância e pretensão, o diabo simboliza a ambição que toda criança nutriu de substituir-se ao pai. É o que empresta a ele seu caráter rebelde, “sua desobediência insubordinada e insurreição final contra a autoridade de Deus Pai” (Ibid., p. 180).

Tentador, poderoso, desinibido em seu gozo, tirânico, selvagem, cruel, horrendo, anormal e secretamente admirado em sua rebeldia revolucionária; o diabo me parece, enfim, bastante emblemático da mítica monstruosidade que, diga-se de passagem, continua orientando, até hoje, nossas projeções.

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