Um outro link entre Austin e a psicanálise exigirá que compreendamos o conceito girardiano de méconnaissance, termo que foi traduzido como ‘desconhecimento’, mas que remete mais exatamente a uma má compreensão, uma ciência parcial e distorcida. O objeto da méconnaissance em última instância é o que Girard não cansou de estudar: o mecanismo expiatório como um todo - o complexo movimento de eleição e vitimação unânime de um modelo-obstáculo em comum - mas ela atua sobre seus elementos específicos de modo distinto.
Em relação à violência humana da qual cada um participa, a violência da qual cada um de nós é capaz, o desconhecimento age no sentido de rejeitá-la para fora, projetá-la (1). Este é o movimento que institui o sagrado primitivo, nas sociedades totêmicas, por exemplo, o sagrado que não passa de violência desumanizada, considerada como exterior, alheia ao homem - depositada em um deus cruel ou animal totêmico inclemente. Mas em um nível mais elementar esta espécie de rejeição também alimenta as mundanas rivalidades, onde cada rival percebe o outro como o responsável por qualquer hostilidade entre eles.
A méconnaissance incide ainda sobre o aspecto do processo que chega mais perto de ser o mais crucial, “o mais capaz de trair o segredo” (Girard, 1990 [1972], p. 392) do caráter irracional da expiação: trata-se do “elemento de arbitrariedade na seleção da vítima” (Girard, 1990 [1972], p. 392). Toda expiação, desde as mais originárias, baseia-se em um deslocamento, a vítima sempre é um substituto. Nos ritos e práticas sacrificiais, trata-se de um substituto das vítimas - aleatórias; e nisso Girard sublinha o caráter fantasístico do pai primevo freudiano - dos linchamentos arcaicos que, segundo Freud e Girard, possibilitaram a vida em comunidade, canalizando a violência de todos para um único alvo. Mas mesmo nos fenômenos espontâneos, não ritualizados, de violência unânime, a vítima comparece no impossível lugar do "duplo monstruoso", o que significa dizer que ela representa o agrupamento inteiro, ou a violência de cada um dos linchadores.
Pois bem, este é o ponto em que o desconhecimento age mais intensamente, na substituição sacrificial. O que está em questão neste desconhecimento não é a inocência de uma vítima específica, já que uma evidência deste tipo não causa nenhum curto-circuito no processo expiatório, não impede que a violência deslize e seja imputada a um novo substituto, um alvo mais adequado para as projeções. Não, o objeto do desconhecimento é a substitutibilidade em si, ou seja, o fato de qualquer vítima - pensem num criminoso, como vítima da coletividade indignada - participar da violência humana tanto quanto qualquer outro membro da comunidade. O que se inverte através deste expediente é a “relação entre a situação global da sociedade e a transgressão individual. (...) Real ou não, a responsabilidade das vítimas sofre o mesmo engrandecimento fantástico” (Girard, 2004 [1982], p. 30).
Os registros de experiências expiatórias são necessariamente atravessadas pela méconnaissance. Se a vítima é verdadeiramente unânime, os relatos e narrativas surgidos nesse contexto portarão o selo do desconhecimento da substitutibilidade que permitiu tal unanimidade. A esta espécie de discurso, que ao mesmo tempo decorre da méconnaissance e a perpetua, Girard se refere como texto de perseguição.
Entendo com isso os relatos de violências reais, frequentemente coletivas, redigidos na perspectiva dos perseguidores, e atingidas, por conseguinte, por distorções características. É preciso perceber tais distorções para retificá-las e para determinar o arbitrário de todas as violências que o texto de perseguição apresenta como bem fundadas (Girard, 2004 [1982], p. 16).
De tais distorções, a mais marcante é a transfiguração da vítima, o exagero de sua potência e nocividade, o que permite inclusive que em algumas destas narrativas nada seja dissimulado em relação à violência unânime em si; o perseguido merecia quaisquer crueldades que se lhe dirigissem. Às transfigurações Girard se refere pela expressão ‘representações persecutórias’, e as identifica não só em relatos medievais de processos de bruxaria ou poemas do século XIV onde a culpa dos judeus pela peste negra era dada como fato, mas também nos mitos, os mais antigos e desfigurados textos de perseguição. Os crimes dos deuses, de que falam os mitos, por exemplo, seriam os crimes dos quais vítimas expiatórias teriam sido acusadas antes de seu linchamento e divinização.
Não é surpreendente que o Olimpo seja povoado de criaturas que exibem um currículo repleto de estupros, assassinatos, parricídios e de incestos, sem contar os atos de demência e bestialidade (Girard, 1990 [1972], p. 317).
O movimento geral destes discursos é o de deslocar o foco “da cidade que expulsa seu katharma para este próprio katharma (2)” (Girard, 1990 [1972], p. 367) através da transfiguração promovida pela representação persecutória: chamar a atenção para o "monstro", e desviá-la da vitimação que se está promovendo. O que se propaga é a crença na culpabilidade da vítima, uma culpabilidade que, levada às últimas conseqüências, visa denotá-la como o agente, não só de crises sociais amplas - "é por causa de gente como ele que o mundo não vai pra frente!" -, crises que na verdade derivam da, diria Freud, universalidade da pulsão de morte, mas também agente do próprio processo expiatório, do início ao fim - "foi ele próprio que provocou sua punição" (3).
Para além de certo limiar de crença, o efeito de bode expiatório inverte completamente as relações entre os perseguidores e sua vítima, e é essa inversão que produz o sagrado, os antepassados fundantes e as divindades. Ela faz da vítima, na realidade passiva, a única causa agente e onipotente diante de um grupo que considera a si próprio como inteiramente agido (Girard, 2004 [1982], p. 61).
O lado benéfico da onipotência da vítima, que efetivamente traz a paz através de sua morte, comparece principalmente nos mitos mais arcaicos, os referentes aos deuses. A ambivalência que isto instaura pode sofrer uma decantação e dar origem a narrativas cujos personagens encarnam aspectos parciais da vítima original transfigurada, como aquelas que giram em torno de heróis e monstros.
Algum grau de ambivalência sempre persiste, no entanto: Girard chama a atenção, por exemplo, para o fato de que a medicina judaica gozava de um “prestígio excepcional” (Girard, 2004 [1982], p. 63) durante o mesmo período da Idade Média em que este povo foi acusado de envenenar os rios da Europa e causar a peste. O decisivo na transfiguração é a atribuição de onipotência (a começar, como vimos, pela atribuição de agência - entender um outro como agenciador ou causa de tudo que ocorre), em um sentido ou em outro: “o prestígio e o preconceito constituem as duas faces de uma só e mesma atitude, e é preciso ver nisso uma sobrevivência do sagrado primitivo” (Girard, 2004 [1982], p. 64).
Enfim, estudando a méconnaissance, me interessei por esta noção de atribuição de agência enquanto, digamos, parte da psicose (paranóica) da vida cotidiana. E para pensá-la recorri tanto ao Seminário 3 de Lacan quanto à teoria dos atos de fala de Austin. É o que faremos em seguida.
Notas:
(1) Adianto que Girard, que não é psicanalista, não discute o caráter desta exteriorização em relação à diferença esboçada por Freud, em sua análise das Memórias de Schreber, entre a projeção e o retorno desde fora do que foi abolido ou nem mesmo registrado interiormente; ou entre projeção e foraclusão, diria Lacan..
(2) Segundo Girard esta palavra grega
designa originalmente a vítima sacrificial humana. Posteriormente veio a designar o objeto maléfico que é purgado de um corpo
em rituais aparentados aos xamanísticos. O termo pertence ao mesmo
campo semântico que katharsis, de onde deriva nosso
‘catarse’.
(3) Esbarramos aqui numa questão ética interessante à psicanálise, que - enquanto método promotor de autonomia em uma relação clínica entre dois indivíduos, onde, por exemplo, perguntar a um analisando "será que você está pedindo para ser preso?" é uma intervenção enriquecedora, capaz de provocar insight - facilmente incorre nesta modalidade de méconnaissance ao tornar-se discurso sobre o analisando mas dirigido a terceiros, particularmente à "sociedade" enquanto substituto externo do supereu; discurso que deixa de ser clínico para se tornar epistemofílico - tenho a impressão, como Barande, que grande parte de nossa produção teórica sobre o "perverso" exemplifica isto. Na verdade, quando se publica uma teorização se está fazendo, queira ou não, clínica, sim, mas da cultura. Escrever, pois, que há um tipo de pessoa que provoca sua própria vitimação - sendo por ela totalmente responsável - através da atuação de sua idiossincrática fantasia de tonar-se a mais nova encarnação do pai primevo é, culturalmente, em grande parte iatrogênico. Fui denso?
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