terça-feira, 3 de julho de 2012

A interpretação psicanalítica e a pragmática da linguagem


Austin é um caso intrigante: pouco estudado, não deixou de ser citado, no entanto, por gente do calibre de um Derrida. Agora que o inglês está devidamente apresentado aqui no blog, posso esboçar alguns links entre a teoria dos atos de fala e a psicanálise; eles prometem, a meu ver, enriquecer ambos os saberes. A começar pela luz que pode ser lançada sobre a concepção que sustentemos a respeito de nossas intervenções na clínica, e, mais especificamente, seu caráter interpretativo. 



Freud define 'interpretar', se indiretamente, a certa altura de suas Conferências introdutórias, como “chamar a atenção para o sentido”: “chamar a atenção para o sentido desse lapso de língua, ou, por outras palavras, (...) interpretá-lo” (Freud, S., 1969-80 [1916 [1915]], ed. Eletrônica). Adicionemos sua própria ressalva:

“Vamos, mais uma vez, chegar a um acordo sobre o que se deve entender por ‘sentido’ de processo psíquico. Queremos dizer com isso tão-somente a intenção à qual serve e sua posição em uma continuidade psíquica. Na maioria de nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por ‘intenção’ ou ‘propósito’” (Freud, S., 1969-80 [1916 [1915]], ed. eletrônica).

Ora, intenção, propósito e sentido são termos caros a Austin. Este último é abordado, em consonância com o que propõe Freud acima, de modo a ampliar seu campo e incluir não só o significado (constatativo ou locucionário) de um enunciado sob seu 'sentido', mas também sua força ilocucionária, ou o que é feito ao se dizê-lo, senão, além de tudo isto, seus efeitos perlocucionários, ou o que tal enunciado suscita no interlocutor. 

Já intenção e propósito, junto com 'deliberação', são termos discutidos num artigo intitulado, com bom humor, como sempre, “Three Ways of Spilling Ink” ("três maneiras de derramar tinta"), que figura em “Philosophical Papers” (1979 [1961]).

O exame da deliberação feito por Austin aproxima-a dos processos psíquicos conscientes, em todos os sentidos, de forma precisa: “I act deliberately when I have deliberated – which means when I have stopped to ask myself, ‘Shall I or shan´t I?’ and then decided to do X, which I did” (Austin, J. L., 1979 [1961], p. 286) (1). Já a intenção e o propósito apontam para, respectivamente, a força e o efeito do enunciado, antecipando o que Austin caracterizaria mais tarde como as dimensões ilocucionária e perlocucionária do ato de fala.


Portanto se, como diz Freud, interpretar é chamar a atenção para intenções e propósitos, isto quer dizer que a psicanálise não se ocupa das deliberações conscientes e constatativas do analisando, mas com seu discurso enquanto performance. Talvez seja esta, enfim, ao menos uma das funções da interpretação: devolver ao analisando uma possível leitura de seus atos de fala, em especial do aspecto ilocucionário destes. Isto serve ao modesto propósito de tentar fazer com que o analisando se inclua em sua fala; olhe para sua produção discursiva como algo por ele agenciado; afaste-se de uma posição passiva em relação ao que diz.

“O analista respeita a individualidade do paciente e não procura remoldá-lo de acordo com suas próprias idéias pessoais, isto é, as do médico; contenta-se com evitar dar conselhos e, em vez disso, com despertar o poder de iniciativa do paciente” (Freud, S., 1969-80 [1923 [1922]], ed. eletrônica).

Nada mais eficiente para tal do que denunciar o agenciamento insuspeitado, ou a performatividade implícita, em falas aparentemente vazias, como talvez Lacan chamasse os enunciados mascarados na constatatividade.
Nos termos de Austin, interpretar é então, sugiro, deslocar o foco da fala de seu aspecto locucionário ou perlocucionário para o ato ilocucionário propriamente dito. A oscilação frequente entre fala locucionária – quando o analisando fornece informações sobre sua vida, ‘conta sua história’, relata os acontecimentos de seu dia, descreve pessoas e situações, etc. – e fala perlocucionária – quando o analisando fala buscando influenciar o analista, despertar uma reação ou obter uma resposta, ou seja, qualquer tipo de fala demandante, manipuladora ou estratégica – é questionada pela interpretação, que revela a sempre surpreendente possibilidade de tomar a fala como ato ilocucionário: "o que você tenciona fazer ao dizer isto?" - ou, vejam que coisa - "o que você quer, o que deseja, dizendo tal coisa?". Encontramo-nos novamente com a ideia de que a análise em jogo é a da performatividade, no aqui e agora, mais do que a da história de vida, das lembranças, do passado. 

De fato, tendo a valorizar tal dimensão interpretativa – dimensão que poderia ser chamada de ‘transferencial’ – principalmente pela surpresa que causa e pela consequente flexibilização do discurso e possibilidade de mudança. Reconhecer a originalidade da psicanálise na investigação da transferência - e da contratransferência, intimamente ligada à dimensão perlocucionária dos atos de fala do analisando - é situá-la ao lado de uma concepção pragmática de linguagem, definida como prática social. Orientar-se pela importância da relação analítica é caminhar com Austin em sua valorização da performatividade.

Notas:

(1) Eu ajo deliberadamente quando eu deliberei – quer dizer, quando eu parei para me perguntar, ‘Devo ou não devo?’ e então decidi fazer X, que fiz.

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