sexta-feira, 6 de julho de 2012

Atribuição de agência (1)

A partir do pensamento de René Girard pode ser delineada, por trás de suas várias roupagens, determinada tendência humana de exteriorização de causalidade – um aspecto da méconnaissance – que parece estar na base dos fenômenos expiatórios e que implica em que a identificação do agente em uma dada situação seja um trabalho psíquico: o agente não é dado, mas construído, negociado. Tentarei aqui delinear a noção desta tendência – à qual gostaria de me referir pela expressão atribuição de agência – em diálogo com Lacan e o filósofo da linguagem John Langshaw Austin.


Antes de tudo, estamos aí às voltas com a problemática do sujeito. Outra forma da questão “quem age?” não é outra senão “onde está o sujeito?”, questão que pode motivar distinções que Lacan chamou de míticas, aquelas que “supõem que o sujeito esteja em alguma parte” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 47). A escolha do termo agência visa justamente decantar o que está em jogo neste mecanismo atributivo, nesta delimitação de um sujeito do ato, termo que talvez tenha perdido muito de sua conotação primeira – segundo o dicionário, “submetido” (Cunha, A. G. da, 1986, p. 742) (1). Se for o sujeito quem age, a que ele está sujeito, submetido? Como pode ser a sujeição o que define uma entidade que preside o ato? O esclarecimento vem pela conotação lingüística do vocábulo: “termo da proposição a respeito do qual se enuncia alguma coisa” (Cunha, A. G. da, 1986, p. 742). O sujeito do enunciado está sujeito à enunciação. E é ao “sujeito” da enunciação que me refiro com o termo 'agente', a esta entidade mítica que está para além do sujeito como tal, como sujeitado, castrado.

A Teoria dos Atos de Fala de J. L. Austin nos ajuda aqui. O filósofo insiste que falar é um ato que não se reduz à mera descrição de um ato mental prévio, e sublinha o caráter único dos enunciados na primeira pessoa do singular do presente do indicativo de alguns verbos, para deixar claro que, para além do aspecto locucionário, para além do enunciado, do léxico, há uma força ilocucionária da fala, há uma enunciação, um ato sendo levado a cabo. Dizer “eu prometo” é tão distante de dizer “eu prometi” quanto de dizer “ele está prometendo”: promessa e descrição são forças ilocucionárias diferentes. Por outro lado, é possível prometer dizendo “eu prometo”, “aceito” diante do altar ou simplesmente balançando a cabeça afirmativamente diante de um interlocutor que esteja pedindo-lhe algo: os enunciados ou comportamentos diferem, mas a força ilocucionária permanece compromissiva, formadora de um compromisso.

Deste ponto-de-vista, o do falar como ato, o sujeito de certos enunciados na voz ativa é, antes de agente, o paciente de uma enunciação caracterizada eminentemente por uma atribuição de agência. Isto é claro nos enunciados descritivos sob os quais Austin identifica uma força ilocucionária que batiza de vereditiva: descrições que têm força de veredictos, julgamentos, sentenças, atribuições. Um exemplo simples (se expiatório) de vereditivo: “A culpa é de fulano” (ou "Fulano" - sujeito - "é o culpado"), que desdobrado em ilocucionaridade explícita torna-se “Eu considero (julgo, avalio etc.) Fulano culpado/causa/responsável de/por tal-e-tal coisa”.

A intuição de Austin a este respeito é preciosa por aproximar tal força ilocucionária – veiculada ainda por verbos como analisar, interpretar e estimar, por exemplo – da formação de um veredicto, de uma dimensão, pois, jurídica do discurso, com toda a parcela de consensualidade e arbitrariedade que subentende. De fato, nossa questão inicial, “quem age?”, busca a entidade causa do ato, e a questão “quem causou?” é o que move todo o procedimento judiciário sob a forma “quem é o culpado?”.

Reencontramos-nos assim com Girard, para quem a vítima coletiva expiatória é sempre paradoxalmente percebida como um algoz. A eleição de um bode expiatório é indissociável da atribuição de agência que se lhe é feita, o que torna este indivíduo – que para qualquer observador externo é uma vítima da coletividade, um agido – a única causa, potência, agência do mal-estar coletivo, do próprio processo expiatório e até dos benefícios advindos de seu sacrifício. O bode expiatório é, na origem, uma entidade ambivalente: terrível e redentor, herói e monstro, o sagrado, enfim, em toda sua ambigüidade. O que o define não é a malevolência ou a benevolência, mas, justamente, a agência.

É por isso que a atribuição de agência é sempre algo persecutória, o que se evidencia nos textos de perseguição: estas narrativas, que se estruturam em torno da delimitação de um culpado, ao mesmo tempo em que servem como justificação para perseguições coletivas, só podem fazê-lo atribuindo agência à(s) vítima(s), tornando-a(s) algoz(es); transformando seu objeto em sujeito na base do decreto. O objetivo da atribuição de agência, numa perspectiva girardiana, é eminentemente expiatório.

Esta vinculação aparece de forma caricatural na paranóia, particularmente nos delírios de perseguição. A atribuição de agência que transforma o “eu o amo” em “ele me odeia e me persegue”, a “alienação convertida” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 54) que, diria Girard, torna o modelo um obstáculo, produz o protagonista da narrativa delirante, o perseguidor diante do qual o paranóico se coloca na voz passiva, uma entidade encarnada em indivíduos concretos que, no entanto, se revelam a um observador externo como os bodes expiatórios particulares do delirante. Não são inexistentes ocasiões em que paranóicos passam ao ato homicida imbuídos da certeza de que estão agindo por uma questão de necessidade, numa defesa que lhes parece legítima. Quando não levada às vias de fato, a alienação convertida pode cristalizar-se em ressentimento, um afeto paranóide menos caricatural e muito mais comum cujo fundamento é também a atribuição de agência, sob a forma “foi (ou é) ele quem me fez (ou faz) mal”, ou ainda "a culpa/causa do meu sofrimento é (d)ele".

(continua...)

Nota:

(1) A segunda conotação – “indivíduo indeterminado” – também é interessante à luz da discussão que se seguirá a respeito da voz média.  

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