domingo, 8 de julho de 2012

Atribuição de agência (2)

(continuado do post anterior...)

A extensão da área da vida psíquica em que atuam modalidades de atribuição de agência é vasta, proporcional ao quão básico parece ser tal mecanismo. Sendo ou não relativo à questão expiatória, pode-se identificá-lo em inúmeros fenômenos: surge como atribuição de intencionalidade, por exemplo, no animismo, que não é privilégio dos povos primitivos, como assinala Lacan:

Há pessoas capazes de dizer que, no interior do organismo, as diversas ordens de secreção interna trocam entre si mensagens, sob a forma por exemplo de hormônios que vêm avisar aos ovários que está tudo bem, ou, ao contrário, que isso claudica ligeiramente (Lacan, 2002 [1955-56], p. 214).

Pode ser observada também nas paixões mais corriqueiras: não é comum dizermos, cedendo a uma forma menos intensa de erotomania, que o objeto de nosso desejo “nos atrai”? Ou, ainda, na própria noção de destino, no sentir-se agido pelo destino, marionete do destino: o ápice da abstração da agência.

Quais seriam as raízes da atribuição de agência? Que experiências fornecem suas bases? A análise das psicoses empreendida por Lacan no livro 3 de seu Seminário traz algumas indicações.

O protagonista do delírio de Schreber parece ser uma imago paterna desdobrada em uma série de substitutos, o que Freud percebeu e que motivou sua hipótese sobre a homossexualidade do paranóico. No entanto, o deus de Schreber é “assexuado e polissexuado ao mesmo tempo” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 119), “marcado por uma espécie de feminização” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 119) e portador de uma unidade tão fundamental que exclui qualquer possibilidade de referência a um terceiro: “o que caracteriza o mundo de Schreber é que esse ele está perdido, e que só o tu subsiste” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 119). Estas características indicam que, aquém do pai imaginário, há um suporte mais arcaico para esta entidade, uma experiência que parece preceder as relações triangulares e a relativa deserotização da linguagem que caracteriza o Simbólico.

O deus de Schreber é “em primeiro lugar presença. E seu modo de presença é o modo falante” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 146). Sustenta um discurso permanente diante do qual Schreber “se sente como alienado” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 145), ele “fala não dizendo nada, e (...) fala no entanto sem parar” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 147). O que é trágico é que desta falação onipresente parece depender a noção mesma que Schreber possa ter de si próprio.  

Seja qual for o caráter doloroso, penoso, importunante, insuportável desses fenômenos, a manutenção de sua relação com eles constitui uma necessidade cuja ruptura lhe seria absolutamente intolerável. Quando ela se encarna, isto é, cada vez que ele perde o contato com esse Deus (...) cada vez que se interrompe a relação, que se produz a retirada da presença divina, eclodem todas as espécies de fenômenos internos de dilaceramento, de dor, diversamente intoleráveis (Lacan, 2002 [1955-56], p. 148).

Schreber está dolorosamente ciente de que é objeto de um Ser que relaciona tudo a ele (Schreber), que o faz notar que algo o visa e que atribui a ele sentimentos que não tem (Lacan, 2002 [1955-56], p. 157), ou seja, um ser que o fala permanentemente e, desta forma, o funda. O testemunho que nos oferece é da heterogeneidade do eu, do sujeito do enunciado, testemunho, pois, do insuportável fato de sermos nascidos de uma atribuição de agência arcaica que vem de um Outro “radicalmente estranho” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 157), o agente da enunciação, diante do que e do qual somos em grande parte impotentes. O sujeito é agente de direito antes de o ser de fato. Basta lembrar como o cuidador de um bebê o interpreta, falando por ele e em seu nome, uma prática ao mesmo tempo alienante e necessária à constituição de um sujeito falante. Este aspecto fundador e mantenedor de subjetividade da atribuição de agência é particularmente clara nos fenômenos alucinatórios auditivos, que por aflitivos que sejam, têm uma função importante para um sujeito em crise psicótica: 

A única forma de reagir que possa ligá-lo à humanização que ele tende a perder é perpetuamente se presentificar nesse pequenino comentário do corrente da vida que faz o texto do automatismo mental. O sujeito que transpôs esse limite não tem mais a segurança significativa costumeira, senão graças ao acompanhamento pelo perpétuo comentário de seus gestos e atos (Lacan, 2002 [1955-56], p. 345).

A saída desta posição de objeto parece consistir em vários graus e modalidades de assunção desta agência atribuída, o que nos permite, no mínimo, um ponto de apoio para atribuirmos, nós mesmos, agência a outrem. Assim, no caso de Schreber, a um período “pré-psicótico” de “confusão profunda” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 247), o crepúsculo do mundo, momento em que encontra-se mais objetificado, segue-se uma progressiva organização do delírio, que depende desta mínima assunção da agência: “em relação à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito nos parece ao mesmo tempo agente e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quanto mais ele não o organiza” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 247). O mecanismo fundamental neste movimento de organização é atribuir (de volta) agência a uma alteridade radical, e tornar-se seu objeto. A partir daí esta alteridade poderá se desmembrar em mãe e/ou eu mesmo (ou, vejam vocês, "meu inconsciente") e/ou pai e/ou o Destino, Deus e toda espécie de bode expiatório.


Há algo na linguagem que sugere isto, que a agência é primordialmente impessoal, e só a posteriori imputada a personificações, agentes por atribuição, objetos da atribuição de agência: trata-se da voz média, distinta das vozes ativa e passiva, característica de línguas antigas e possivelmente a voz originária das línguas indo-europeias, onde “o sujeito se constitui como tal no processo ou no estado que o verbo exprime” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 317). 


A voz média, em que o sujeito é o verbo e tudo o mais é objeto, provavelmente precede as outras, inclusive tendo recebido este nome, sugestivo de uma posição intermediária (entre voz ativa e passiva), apenas no Século II a.C., quando já não era mais empregada (Sproviero, 1997). Lacan lista alguns verbos eminentemente médios (Lacan, 2002 [1955-56], p. 316), nos quais percebemos o efeito da anterioridade da voz média nas línguas atuais. to die (morrer, verbo eminentemente médio), por exemplo, não é usado na voz passiva na língua inglesa, motivo pelo qual recorre-se a to be killed (verbo matar na voz passiva) para expressar a idéia de sofrer uma morte, e convocar ao enunciado o agente da morte em questão (aquele que matou) (1). Por outro lado to be born (verbo nascer, eminentemente médio também, na voz passiva) não tem forma ativa, estranhamente a única em Português.


Em línguas diferentes, a mesma ação é expressa através de vozes verbais diferentes; isso porque evoluíram, cada uma em uma direção, a partir de uma base comum, a voz média, que atesta a indeterminação essencial, originária, de sujeito e objeto, e portanto o elemento de arbitrariedade que se infiltra em qualquer atribuição de agência.


(continua...)


Nota:


(1) Em Português isso não ocorre, pois nosso verbo morrer é usado na voz passiva e convoca o agente da morte: "Fulano foi morto (por Sicrano)". Percebam ainda que to be dead expressa um estado ("estar morto") e não o sofrer uma ação; é voz ativa, na verdade, do verbo to be.

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