(continuado dos posts anteriores...)
"Tu és aquele..." |
Parece-me, a este respeito, que a diferença entre o agente primordial – a alteridade radical arcaica – e seus pálidos substitutos (atamancados às três pancadas, diria Schreber) se esclarece pela análise das forças ilocucionárias distintas de “tu és aquele que me seguirá” - força esta similar à de "tu és aquele que age" - e “tu és aquele que me seguirás”. No primeiro caso a força é vereditiva, a doação de uma sentença inapelável, algo “bem próximo da definição” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 322), e o referente do termo 'aquele' revela-se estar, aquém ou além do interlocutor ('tu'), enraizado em um objeto subjetivamente concebido, em termos winnicottianos, o que empresta ao enunciado um grau de certeza afim à delirante; "aquele que me seguirá" se refere a uma entidade (psíquica) pré-existente, bem como "aquele que age" refere-se à causa primeira, ao sujeito da enunciação: não-sujeitado, não-castrado, suposto e mítico. Ambos encarnados em um tu qualquer, um tu arbitrário, desde que essa arbitrariedade, claro, não seja reconhecida.
Em contraste, a força de “tu és aquele que me seguirás”, como Lacan a caracteriza, é, no dizer de Austin, exercitiva, uma ordem, pois se trata de um mandato ou um apelo (Lacan, 2002 [1955-56], p. 322), dirigido a um 'tu' cuja autonomia está minimamente resguardada. Ocorre que os atos de fala exercitivos dependem particularmente, ao contrário dos vereditivos, de condições que dizem respeito ao interlocutor e suas reações à enunciação (estão muito mais expostos a infelicidades perlocucionárias, diria Austin): “isso quer dizer também que ela [a pessoa que ouve o mandato] pode não seguir" (Lacan, 2002 [1955-56], p. 316). Se no vereditivo a atribuição de agência constitui a própria intenção da enunciação, sua força mesma, no segundo caso ela é pressuposta: um mandato deriva de uma mais primitiva atribuição ao interlocutor da capacidade de obedecer-lho, para não dizer entendê-lo – e, consequentemente, da possibilidade de não fazê-lo.
Um exemplo desse tipo de "tu és..." exercitivo, por sinal, como enunciado que apenas convida o interlocutor a desempenhar um papel na fantasia do emissor, ou entrar no jogo que seu desejo visa instaurar, são as piadas preconceituosas que abordamos neste outro post.
Pois bem, a atribuição de agência, por outro lado, parece ser essencialmente vereditiva, e comporta, pois, uma restrição ímpar das possibilidades de resposta de seu objeto explícito, o sujeito do enunciado. Lacan o sublinha da seguinte forma:
Tu és aquele que me seguirá supõe, a meu ver, a assembléia imaginária daqueles que são os suportes do discurso, a presença das testemunhas, e mesmo do tribunal diante do qual o sujeito recebe a advertência ou o aviso ao qual é intimado a responder. Na verdade, exceto respondendo eu te sigo, isto é, obtemperando, não há, nesse nível, outra resposta possível para o sujeito que a de guardar a mensagem no próprio estado em que é a ele enviada, quando muito modificando a pessoa, que a de inscrevê-la como um elemento de seu discurso interior, ao qual ele tem, seja lá o que pretenda, de responder para não segui-lo. Essa indicação, no terreno em que ela o intima a responder, seria preciso, propriamente falando, que justamente ele não o siga absolutamente nesse terreno, isto é, que ele se recuse a ouvir. Assim que ouve, ele é impelido a isso (Lacan, 2002 [1955-56], p. 339).
Considerando-se que os efeitos perlocucionários (o que se causa no interlocutor através de uma enunciação) só são considerados por Austin como tais desde que sejam não-convencionais, inesperados, sendo o ato perlocucionário o que abre o discurso à alteridade e à surpresa, localizaríamos a aquiescência de que fala Lacan – o responder “sim, eu te sigo”, ou ainda "sim, sou eu quem age, sou eu a causa primeira" – como um aspecto ainda ilocucionário do ato atributivo, isto é, como mera conseqüência da própria intenção atributiva de agência, restando ao interlocutor como possibilidade propriamente perlocucionária apenas a recusa a ouvir, a tentativa de instaurar uma infelicidade afim à que Austin batizou de “non-play” (Austin, 2000 [1962], pp. 26-34): basicamente, no caso dos vereditivos, "dar de ombros" ao veredicto. No entanto, continua Lacan, “a recusa de ouvir é uma força da qual nenhum sujeito, salvo preparação ginástica especial, dispõe verdadeiramente. É justamente nesse registro que se manifesta a força própria do discurso” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 339). Mormente, creio, quando quem ouve o "tu és..." vereditivo é um bebê diante da mãe, ou um bode expiatório diante da turba.
Esta extrema redução da perlocucionaridade conjugada com a função fundadora de subjetividade constitui o caráter paradoxal destes enunciados, que decretam a agência do sujeito sem dar-lhe direito a resposta, paradoxo presente na própria expressão ‘atribuição de agência’: definir como agente o outro que, no entanto, é completamente dependente de uma atribuição vinda de outro lugar que não dele próprio para se constituir e manter como tal. E este paradoxo, encontrado no que Girard chama de textos de perseguição, na medida em que afirma simultaneamente "tu és a causa; tu és potente, não-castrado" e "tu és o que eu afirmo; tu és, por mim, pois, castrado", soa muito semelhante ao que a Verleugnung instaura, não? Não será, ao invés de no erotismo heterodoxo, antes aí - no "vós sois o perigo", por exemplo, que o nazismo dirige aos judeus - que a Verleugnung se revela em sua forma mais inequívoca e indesejável?
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