Se há um documentário que esboça abordar a psicodinâmica do processo de acusação e a ancoragem da figura do criminoso sexual na fantasia, é Na Captura dos Friedmans, de Andrew Jarecki.
O filme reconstitui, utilizando-se de registros em vídeo da época e da coleta atual de depoimentos, a estória do julgamento e prisão de Arnold Friedman e seu filho caçula, acusados de pedofilia. A interceptação pela polícia de revistas de tal conteúdo endereçadas pelo correio ao Sr. Friedman serve como ponto de partida e fornece a única prova material de um processo que adquirirá um escopo e uma visibilidade impressionantes através da proliferação de depoimentos de crianças – supostamente vítimas de assédio durante as aulas ministradas por Arnold – e cobertura midiática intensa. Acompanha-se, passo a passo, a dimensão que o julgamento vai tomando, a mobilização de um número cada vez maior de pessoas em torno da família Friedman, desde os pais de crianças supostamente molestadas até os telespectadores dos noticiários nacionais, e a força que tal mobilização vai aplicando sobre as estratégias e decisões judiciais. Momentos exemplares ocorrem quando os acusados, em desespero, declaram-se culpados de assédio, por insistência de seus próprios advogados, como manobra de barganha em relação à pena. A forma indisfarçadamente diretiva pela qual são colhidos os depoimentos das crianças e as incoerências e contradições que estes evidenciam deixam bem claro o quanto de bom senso estavam todos os envolvidos dispostos a sacrificar, conscientemente ou não, em nome das moções pulsionais que impeliam todo o processo.
A eleição de Arnold Friedman a algoz da sociedade como um todo é algo surpreendente, já que lhe faltavam recursos para satisfazer seus impulsos proibidos abertamente, ou para fazer valer sua vontade diante de um membro sequer da comunidade. Arnold, em suma, não é nenhum Hannibal Lecter. Pelo contrário, o que presenciamos durante todo o documentário é a impotência e apatia do Sr. Friedman diante de tudo o que lhe acontece. No entanto, os atributos do algoz, sua onipotência e monstruosidade, se fazem presentes assim mesmo, não em Arnold, mas no discurso que vai sendo tecido a seu respeito: nos noticiários, nas declarações da polícia e, principalmente, nos depoimentos de suas supostas vítimas, que mais parecem "fantasias grotescas", nas palavras de um dos alunos do Sr. Friedman:
Minha lembrança das aulas é basicamente positiva, agradável. (...) Os tipos de comportamentos descritos [pelos acusadores] eram, bem, simplesmente satânicos em sua natureza, eles o fazem parecer algum tipo de sádico brutal. (...) A própria natureza destas acusações é tão absurda, quase parece alguma espécie de fantasia grotesca. (1) (Ron Georgalis, 28m39s).
O excesso de angústia que se depreende de tais descrições indica o quanto as acusações são conduzidas pela pulsionalidade dos próprios acusadores, num mecanismo, diz Freud, neurótico:
Em alguns casos as características da angústia realística e da angústia neurótica se acham mescladas. O perigo é conhecido e real, mas a angústia referente a ele é supergrande, maior do que nos parece apropriado. É esse excedente de angústia que trai a presença de um elemento neurótico. (...) ao perigo real conhecido se acha ligado um perigo instintual desconhecido (Freud, 2001 [1925a], p. 98).
Além da superestimação da figura do algoz, o caso Friedman é marcado pela presteza com que as acusações se estendem ao filho de Arnold, Jesse, que acaba cumprindo uma extensa pena de reclusão apesar de não ter havido nenhuma prova material contra si. Em determinado momento do processo os advogados se empenham justamente em desvincular os acusados um do outro perante o tribunal, e é significativo que tal momento seja aquele em que Arnold Friedman relutantemente se declara culpado. Que tal momento tenha sido o mais oportuno para desvencilhar Jesse de Arnold e passar a empenhar todo o esforço jurídico para inocentar o primeiro é um indício de que a figura do algoz é, de certa forma, negociável, e que é ao menos minimamente indiferente que uma ou outra pessoa desempenhe tal papel.
Nesta possibilidade de deslocamento da função de algoz também nos encontramos com Freud, que relata uma anedota, já abordada em outro post, sobre a demanda de culpabilização, estabelecendo um paralelo com a situação analítica:
Conhecemos este traço; é característico dos processos de [investimento] no [isso]. Ele é encontrado nos [investimentos] eróticos, onde se manifesta uma indiferença peculiar com relação aos objetos, sendo especialmente evidente nas transferências que surgem na análise, as quais se desenvolvem de modo inevitável, independentemente das pessoas que são seu objeto. Há não muito tempo atrás, Rank publicou alguns bons exemplos da maneira pela qual atos neuróticos de vingança podem ser dirigidos contra a pessoa errada. Tal comportamento por parte do inconsciente nos faz lembrar a cômica história dos três alfaiates de aldeia, um dos quais tinha de ser enforcado porque o único ferreiro do povoado cometera um delito capital. A punição tem de ser exigida, mesmo que ela não incida sobre o culpado (Id., 1997 [1923], p. 48).
Esta necessidade (expiatória, purgativa) de punição parece ser especialmente urgente quando se trata de crimes sexuais. Nestes casos a demanda de culpabilização chega a se sobrepor aos trâmites jurídicos, provocando reações sociais cuja intensidade se desenvolve independentemente de qualquer evidência, investigação e verificação.
Um exemplo mais próximo de nossa realidade o demonstra: o caso de uma escola paulista, a Escola Base, foi descrito por Ribeiro (2000) em detalhes. Em 1994 a acusação de abuso sexual por parte de uma única mãe de aluno levou sete pessoas – entre funcionários, donos da escola, pais de um aluno e até um estrangeiro que nada tinha a ver com o caso – à berlinda, suspeitos de promover e fotografar orgias entre os alunos da escola. A inconclusividade dos laudos médicos e psicológicos não evitou nem que a mídia tomasse as acusações como fatos, nem que dois suspeitos fossem presos, nem que a escola fosse depredada e a casa dos pais acusados fosse saqueada. Quatro meses depois, a inocência de todos os acusados viria a ser comprovada e o caso arquivado.
É interessante, então, constatar que sempre que Na captura dos Friedmans é mencionado em uma conversa, a discussão emperra na dúvida sobre a inocência ou culpabilidade dos suspeitos – sua elegibilidade a algoz, em suma. O próprio cartaz do filme, reconhecendo o tipo de angústia que mais facilmente despertará, nos convida a brincar de juiz, ao provocar: "em quem você acredita?". É como se esta decisão, mesmo, vejam bem, em um ambiente acadêmico e psicanalítico, fosse pré-requisito para que se pudesse avaliar o comportamento do socius a respeito da situação - em sendo os suspeitos culpados, todos os nossos excessos, nossos esforços expiatórios, nossa sede de sangue, como diz Girard, está justificada e passa a prescindir de explicações.
"Culpados, com certeza... todos eles!!" |
Ora, o que acho genial no documentário é justamente sua inconclusão a respeito; assim instaura uma pausa, uma suspensão no mecanismo expiatório, durante a qual estamos numa posição privilegiada, como analistas, para colocar uma questão aos espectadores, em especial àqueles que se indignam e demandam culpabilidade: "mas então o que tudo isso, que tanto te inflama, tem a ver com o teu desejo?". Pois o que o que o filme flagra, a meu ver, é a coletividade enunciando, sem o saber, a um de seus membros: "tu és aquele que terá atuado minha fantasia".
Nota:
(1) No original: “My general recollection of the classes is basically a positive one, a pleasant one. [...] The types of behaviours which were described were, well, just downright satanic in nature, they make him sound like some kind of brutal sadist. [...] The very nature of these charges is so absurd, it seems almost like some kind of grotesque fantasy."
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