terça-feira, 26 de junho de 2012

Muito além da “perversão”: um estudo transversal da Verleugnung - parte 3


(continuado do post anterior...)

O fetichismo e o texto freudiano a ele dedicado tornaram-se o principal ponto de ancoragem de grande parte do discurso psicanalítico dedicado ao campo da perversão. Valas (1990), por exemplo, escreve:


Esse texto, publicado em 1927, apresenta-se em sua elaboração como uma porta de entrada necessária ao estudo das perversões no campo freudiano (...). É como uma forma de acabamento de todos os trabalhos que consagrou ao problema das perversões, de sorte que o fetichismo se apresenta bem como sinal de orientação para que se observe o extraordinário polimorfismo das manifestações perversas. A perversão, com efeito, deve ser distinta em sua estrutura própria (...). [O fetichismo] se apresenta como uma espécie de modelo geral, por seus elementos invariantes; pode-se, portanto, demarcá-lo como uma estrutura (Valas, 1990, pp. 88-89).

Afirmações análogas podem ser encontradas em Chasseguet- Smirgel (1991, p. 42), Helsinger (1996, p. 99), e em inúmeros outros. É possível, no entanto, que estas leituras percorram Freud precisamente em reverso. A partir deste artigo, Fetichismo (Freud, 1927/1996), buscam re-instaurar delimitações precisas entre perversão e normalidade, fazendo a especificidade do fetichismo estender-se apenas o suficiente para tornar-se sinônimo de perversão e agrupar sob o termo novamente todo o oitocentista catálogo comportamental de desvios da genitalidade. Como lembra Rudge (2004), “se o método psicanalítico nos autoriza a propor uma nosografia, certamente esta não será como a da psiquiatria, que se apóia fundamentalmente na observação e classificação do comportamento” (Rudge, 2004, formato eletrônico).
Vale lembrar, em primeiro lugar, que o fetichismo havia sido citado, bem mais cedo, em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (Freud, 1907/1996), onde o autor empreende uma bela análise de um personagem da ficção, Norbert Hanold, arqueólogo que de uma paixão por uma escultura desenvolve “subitamente um vivíssimo interesse pelos pés e pelo andar das mulheres” (Freud, 1907/1996, p. 49) e um “delírio histérico” (Ibid., p. 48, nota 1). Mesmo levando em conta as grandes ressalvas que deve carregar consigo a análise de uma personagem ficcional, encontramos aqui duas considerações nosográficas decididamente críticas que, se colocadas como um preâmbulo ao texto de 1927, problematizam um pouco a reificação do fetichismo em uma estrutura diagnóstica ‘perversa’.
A primeira indica um decidido afastamento de critérios comportamentais, objetivos, que Freud insinua serem “grosseiros”:

Um psiquiatra talvez incluísse o delírio de Norbert Hanold no vasto grupo da “paranóia”, classificando-o provavelmente como “erotomania fetichista”, já que seu traço mais saliente era uma paixão por uma escultura, e aos olhos desse psiquiatra, que tende a ver tudo pelo prisma mais grosseiro, o interesse do jovem arqueólogo por pés e posições de pés inevitavelmente passaria por “fetichismo” (Ibid., p. 48).

Em sua segunda consideração Freud (1907/1996) nos lembra o porquê de abandonar critérios “grosseiros” em direção a um saber clínico, a psicanálise: mais (ou menos) que um diagnóstico, a “má reputação de ser um fetichista de pés” (Ibid., p. 49, grifo meu), ou a qualificação de ‘degenerado’, ambos parte do espectro da perversão em sua origem, dificultam

a “empatia”; o diagnóstico de dégénéré, certo ou errado, colocaria uma barreira entre o arqueólogo e nós, leitores, que somos pessoas normais, o tipo padrão da humanidade (Ibid., p. 48).

A partir destas considerações, minha intenção é ler no texto de 1927 uma complexificação do fetichismo, originalmente capturado pelo ‘selo da perversão’, que permitirá uma privilegiada abertura para a metapsicologia em direção a mecanismos e conceitos propriamente analíticos: a Verleugnung como mecanismo disseminado e a divisão do eu como fato constitutivo do psiquismo.
É fundamental notar, por exemplo, que no famoso texto dedicado ao fetichismo não comparecem, uma vez sequer, nem o termo ‘perversão’ nem qualquer de seus derivados. É um dado ainda mais importante pelo fato de Freud (1927/1996) fazer explícitas referências a seu recente esboço classificatório. De fato, o que constitui um tema (e um problema) para Freud sob este prisma é antes a relação entre o mecanismo que chama de Verleugnung e o campo das chamadas psicoses.  

(continua...)

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