(continuado do post anterior...)
O fetichismo e o texto freudiano a ele dedicado tornaram-se o
principal ponto de ancoragem de grande parte do discurso
psicanalítico dedicado ao campo da perversão.
Valas (1990), por exemplo,
escreve:
Esse texto, publicado em 1927, apresenta-se em sua elaboração como uma porta de entrada necessária ao estudo das perversões no campo freudiano (...). É como uma forma de acabamento de todos os trabalhos que consagrou ao problema das perversões, de sorte que o fetichismo se apresenta bem como sinal de orientação para que se observe o extraordinário polimorfismo das manifestações perversas. A perversão, com efeito, deve ser distinta em sua estrutura própria (...). [O fetichismo] se apresenta como uma espécie de modelo geral, por seus elementos invariantes; pode-se, portanto, demarcá-lo como uma estrutura (Valas, 1990, pp. 88-89).
Afirmações análogas podem ser encontradas em Chasseguet- Smirgel
(1991, p. 42), Helsinger (1996, p. 99), e em inúmeros outros. É
possível, no entanto, que estas leituras percorram Freud
precisamente em reverso. A partir deste artigo,
Fetichismo
(Freud, 1927/1996), buscam
re-instaurar delimitações precisas entre perversão e normalidade,
fazendo a especificidade do fetichismo estender-se apenas o
suficiente para tornar-se sinônimo de perversão e agrupar sob o
termo novamente todo o oitocentista catálogo comportamental de
desvios da genitalidade. Como lembra Rudge (2004), “se o método
psicanalítico nos autoriza a propor uma nosografia, certamente esta
não será como a da psiquiatria, que se apóia fundamentalmente na
observação e classificação do comportamento” (Rudge, 2004,
formato eletrônico).
Vale lembrar, em primeiro lugar, que o fetichismo havia sido citado,
bem mais cedo, em Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen (Freud,
1907/1996), onde o autor empreende uma bela análise de um
personagem da ficção, Norbert Hanold, arqueólogo que de uma paixão
por uma escultura desenvolve “subitamente um vivíssimo interesse
pelos pés e pelo andar das mulheres” (Freud,
1907/1996, p. 49) e um “delírio histérico”
(Ibid., p. 48, nota 1). Mesmo levando em conta as grandes
ressalvas que deve carregar consigo a análise de uma personagem
ficcional, encontramos aqui duas considerações nosográficas
decididamente críticas que, se colocadas como um preâmbulo ao texto
de 1927, problematizam um pouco a reificação do fetichismo em uma
estrutura diagnóstica ‘perversa’.
A primeira indica um decidido afastamento de critérios
comportamentais, objetivos, que Freud insinua serem “grosseiros”:
Um psiquiatra talvez incluísse o delírio de Norbert Hanold no vasto grupo da “paranóia”, classificando-o provavelmente como “erotomania fetichista”, já que seu traço mais saliente era uma paixão por uma escultura, e aos olhos desse psiquiatra, que tende a ver tudo pelo prisma mais grosseiro, o interesse do jovem arqueólogo por pés e posições de pés inevitavelmente passaria por “fetichismo” (Ibid., p. 48).
Em sua segunda consideração Freud (1907/1996)
nos lembra o porquê de abandonar critérios “grosseiros”
em direção a um saber clínico, a psicanálise: mais (ou menos) que
um diagnóstico, a “má reputação de ser um fetichista de
pés” (Ibid., p. 49, grifo meu), ou a qualificação de
‘degenerado’, ambos parte do espectro da perversão em sua
origem, dificultam
a “empatia”; o diagnóstico de dégénéré, certo ou errado, colocaria uma barreira entre o arqueólogo e nós, leitores, que somos pessoas normais, o tipo padrão da humanidade (Ibid., p. 48).
A partir destas considerações, minha intenção é ler no texto de
1927 uma complexificação do fetichismo, originalmente capturado
pelo ‘selo da perversão’, que permitirá uma privilegiada
abertura para a metapsicologia em direção a mecanismos e conceitos
propriamente analíticos: a Verleugnung como mecanismo
disseminado e a divisão do eu como fato constitutivo do psiquismo.
É fundamental notar, por exemplo, que no famoso texto dedicado ao
fetichismo não comparecem, uma vez sequer, nem o termo ‘perversão’
nem qualquer de seus derivados. É um dado ainda mais importante pelo
fato de Freud (1927/1996) fazer explícitas referências a seu
recente esboço classificatório. De fato, o que constitui um tema (e
um problema) para Freud sob este prisma é antes a relação entre o
mecanismo que chama de Verleugnung e o campo das chamadas
psicoses.
(continua...)
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