Nietzsche diria que está faltando visceralidade neste blog; aproveitarei então a efêmera ociosidade e a renovada esperança de interlocução pra me permitir ser mais interessante - ou não - por um momento.
Vocês já perceberam que sou muito crítico do hype que vivem hoje as neurociências; não me canso, por exemplo, de denunciar o quão retrógradas, oitocentistas, elas são. E o motivo, antes de tudo político, sempre, como já disse, é simples: dediquei minha formação a uma Weltanschauung diferente, não-objetalizante, promotora de autonomia, a saber, a psicanálise (como a entendo). Vocês que são colegas sabem que Freud negava que a psicanálise fosse uma "visão de mundo", mas pra quem já leu algum Foucault e algum Rorty fica difícil não ler nesta recusa mera defensividade do vienense.
Enfim... nitidez: parece haver um embate entre mentalidades em jogo neste mesmo momento; uma delas a psicanálise (como a entendo), a outra representada de forma exemplar, a meu ver, pelo meu bode expiatório favorito, a neurociência. E o fato é que a psicanálise está perdendo. "Até aí", alguns pensarão, "nenhuma novidade". Bom, o que quero apontar aqui é o que, em sendo este o caso, constitui-se em um erro estratégico que nós, simpatizantes da subjetividade, podemos estar cometendo.
Ocorre que me deparei com um post de blog que me parece muito sintomático desta situação. Nele, uma colega, em defesa da psicanálise e seu método, discute (acaloradamente?) com um hipotético candidato a analisando. Diante das impressões deste a respeito da duração e do custo (financeiro e emocional) de uma análise, a colega tenta catequizar seu interlocutor hipotético recorrendo, em parte, à cristianização da ética da psicanálise, aproximando-a da velha ideia da redenção pelo sofrimento, pela renúncia e pelo sacrifício.
Mas se acreditamos que o sofrimento é o da falta, e como tal estrutura irremediavelmente o psiquismo, por que precisamos convencer nossos analisandos disto? Não seria esta uma conclusão a que chegariam com suas próprias pernas? Creio que sim, mas algo vem impedindo a todos nós, alguns mais, outros menos, de pensar o suficiente para chegar até aí. E que algo é esse? Responde a colega a seu candidato a analisando:
- "Mas é muito demorado. Quero uma solução rápida, uma resposta para os meus problemas, não quero ficar sofrendo....."Bom, sendo assim, você precisa de um padre,uma rezadeira, ou uma vidente que promete" trazer a pessoa amada em três dias".
Ou um terapeuta cognitivista que lhe passe exercícios e deveres de casa. Ou um psicanalista, até, veja só, que lhe receite sofrimento, mas o insira numa espécie de contabilidade cristã, prometendo a redenção no fim do túnel, a cura, a qualidade de vida. Ou ainda, faço questão, um neurocientista que mapeie seu cérebro e um psiquiatra que lhe receite um milagre em forma de pílula. E este último, ao menos, é um expediente que não cansa de ser legitimado, incessantemente, por todos os meios de comunicação de massa de que tenho notícia. Um expediente aparentemente muito mas digno que a rezadeira, sua irmã gêmea. Será mesmo?
Então, enfim, o buraco é mais embaixo, não? O que nos impede de reconhecer a falta e aprender a habitá-la talvez não seja exatamente nossa imaturidade, nosso imediatismo ou nossa baixa resistência à frustração, posto que tudo isso é fomentado culturalmente, pela tagarelice dos vendedores de ilusões e a conivência generalizada em legitimar tais ilusões como soluções.
É este meu ponto: se estamos perdendo terreno no embate, levantemos os olhos, do analisando à nossa frente para o real campo de batalha, o cultural. Se a psicanálise pode dar margem a uma miopia que, em seus piores momentos, só faz desserviços ao promover a culpabilização do analisando ao invés da autonomia (e da responsabilidade, pra mim sinônimos), esforcemo-nos, um pouco que seja, em direcionar nossos esforços políticos para onde eles podem ser efetivos: no questionamento das ilusões obturadoras da falta que nos são oferecidas a todo momento. Pela religião, claro, mas também pela ciência.
Ora, mas se não é isto justamente parte integrante do que fazemos na clínica e chamamos de análise: desconstruir ilusões. Que transborde para fora das quatro paredes do consultório e aborde a real resistência - cultural - à demanda de análise, que tal?
Ou contentemo-nos miseravelmente em culpabilizar nossos potenciais analisandos por pularem de sintoma em sintoma, de suposição de saber em suposição de saber, de entretenimento em entretenimento, em um mundo onde isto é imposto, na base do grito, a todos nós, analistas ou não. É sempre uma opção, mas eu tô fora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário