(continuado de posts anteriores...)
O termo Verleugnung vem sendo traduzido de muitas maneiras
diferentes – rejeição, recusa, desmentido, negação, denegação,
renegação –, o que acredito refletir justamente sua pluralidade
de usos e contextos na própria obra freudiana. A tradução inglesa
vigente – rejeição –, assim como a escolha por ‘recusa’ (em
menor extensão), parecem enfatizar uma relação direta entre
Verleugnung e psicose, algo que vinha sendo construído por
Freud explicitamente até 1927, e que não deixa de aparecer ainda em
textos bem posteriores, como Construções em análise (Freud,
1937/1996).
Em A
organização genital infantil
(Freud, 1923b/1996), o termo aparece através da forma afim
leugnen, ainda casualmente, não constituindo propriamente um
conceito. No entanto, já é convocado desde então para denotar uma
reação a um fragmento de realidade que se impõe à mente – a
diferença sexual – e que estabelece um conflito. A Verleugnung,
portanto, desdobra-se imediatamente em distorções perceptuais:
A criança chega à descoberta de que o pênis não é uma possessão comum a todas as criaturas que a ela se assemelham (...). Sabemos como as crianças reagem às suas primeiras impressões da ausência de um pênis. Rejeitam [leugnen] o fato e acreditam que elas realmente, ainda assim, vêem um pênis (Freud, 1923b/1996, p. 159).
No mesmo ano Freud terminava Neurose e psicose perguntando
“qual pode ser o mecanismo, análogo à repressão, por cujo
intermédio o [eu] se desliga do mundo externo”
(Freud, 1924/1996, p.171). Logo em seguida, em A perda da
realidade na neurose e na psicose, decide usar a Verleugnung
para ocupar este lugar, mas ao mesmo tempo também como sinônimo de
recalque, num exemplo bastante conhecido, mas que teve uma tradução
particularmente infeliz, já que encobria esta sutileza, forçando
uma distinção onde não havia:
a paciente, uma jovem, estava enamorada do cunhado. De pé ao lado do leito de morte da irmã, ela ficou horrorizada de ter o pensamento: ‘Agora ele está livre e pode casar comigo.’ Essa cena foi instantaneamente esquecida e assim o processo de regressão, que conduziu a seus sofrimentos histéricos, foi acionado. Exatamente nesse caso é, ademais, instrutivo aprender ao longo de que via a neurose tentou solucionar o conflito. Ela se afastou do valor da mudança que ocorrera na realidade, reprimindo [verleugnem] a exigência instintual que havia surgido — isto é, seu amor pelo cunhado. A reação psicótica teria sido uma rejeição [verleugnen] do fato da morte da irmã (Freud, 1924b/1996, p. 206).
Eis um esboço da Verleugnung como mecanismo psíquico básico,
que se desdobra em soluções “neuróticas” ou “psicóticas”
conforme atue sobre uma exigência pulsional ou um dado da realidade.
Em 1925, finalmente, em Algumas
conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos
(Freud, 1925/1996), a Verleugnung
é retomada – novamente em relação à diferença sexual –
decididamente para ocupar o lugar de mecanismo próprio ao campo da
psicose:
pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‘rejeição’ [Verleugnung], processo que, na vida mental das crianças, não parece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo de uma psicose. Assim, uma menina pode recusar [verweigert] o fato de ser castrada, enrijecer-se na convicção de que realmente possui um pênis e subseqüentemente ser compelida a comportar-se como se fosse homem (Freud, 1925/1996, pp. 281-282).
Na parte final deste último trecho, no entanto, percebe-se que o que
é negado não é exatamente o mundo externo, mas “o fato de ser
castrada”, um fragmento de realidade – a diferença sexual – já
permeado por uma determinada significação – a castração. É a
significação, e não a percepção, a causa do conflito. Portanto,
quando incide sobre a diferença sexual, a Verleugnung
demonstra, ao mesmo tempo em que oculta, a existência psíquica
desta interpretação específica – fálica – do mundo externo.
Esta parcela de ambigüidade, enfatizada, a meu ver, quando se traduz
o termo por ‘desmentido’, inaugura a conotação que será
valorizada em Fetichismo (Freud, 1927/1996).
É conveniente considerar, ainda, que o artigo imediatamente
precedente a este é A negativa (Freud, 1925b/1996), ou Die
Verneinung, que explorava também o tema da ambigüidade, pelo
ângulo do discurso. O mecanismo da negativa parece bem próximo da
Verleugnung, antes de tudo semanticamente. Uma nota de rodapé
do editor inglês explica que para traduzir Verneinung teve
que recorrer a negation, um termo menos usual do que denial,
justamente por este último ter sido usado “no passado” para
traduzir... Verleugnung. Em português, aliás, a situação
se agrava: traduz-se tanto to negate quanto to deny por
‘negar’.
Mas a semelhança vai além da semântica. O primeiro exemplo de
negativa que Freud (1925b/1996) apresenta é um analisando dizendo
“agora o senhor vai pensar que quero dizer algo insultante, mas
realmente não tenho essa intenção” (Freud,
1925b/1996, p. 265). Este enunciado, que
é manifestamente uma negativa, será logo em seguida
denunciado como portador também de uma espécie de confissão:
“compreendemos que isso é um repúdio,
por projeção, de uma idéia que acaba de ocorrer” (Ibid., p.
265). A negativa, enfim, carrega consigo uma afirmação velada, ou
melhor, uma aquiescência.
Até onde vai a semelhança ou, por outro lado, se a especificidade
de cada mecanismo é suficiente para justificar distinções
diagnósticas (e entre quais entidades clínicas) é difícil
decidir, mas parece ser o reconhecimento desta mesma parcela de
aquiescência também na Verleugnung da castração o que
motivará o artigo de 1927. Não se trata apenas de negar a
castração, mas também de afirmá-la. Para o esboço
classificatório dessa década, então, a contribuição que
Fetichismo traz é uma certa independência entre a
Verleugnung e desdobramentos tradicionalmente entendidos como
psicóticos, sem que disso derive uma nova entidade diagnóstica. O
exemplo que Freud (1927/1996) oferece para ilustrar esta
independência é bastante eloqüente em termos de classificação,
mas raramente citado:
Na análise de dois jovens aprendi que ambos (...) não haviam conseguido tomar conhecimento da morte do querido pai (...) e, contudo, nenhum deles desenvolvera uma psicose. Desse modo, um fragmento de realidade, indubitavelmente importante, fora rejeitado pelo [eu], tal como o fato desagradável da castração feminina é rejeitado nos fetichistas (...). A atitude que se ajustava ao desejo e a atitude que se ajustava à realidade existiam lado a lado. Num de meus dois casos, a divisão constituíra a base de uma neurose obsessiva moderadamente grave (Freud, 1927/1996, pp. 158-159, grifo meu).
Incidindo, assim, também sobre um outro fragmento de realidade
significado de forma a gerar um conflito – a morte do pai – a
Verleugnung passa a encontrar sua especificidade no fato de
instaurar uma oscilação entre duas atitudes opostas que existem
“lado a lado” – ou seja, não se influenciam mutuamente. Daí o
recurso cômodo ao fetichismo, entidade oriunda da sexologia
oitocentista, que comparece como a forma caricata do desdobramento de
uma Verleugnung da castração.
(continua...)
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