quarta-feira, 20 de junho de 2012

Muito além da “perversão”: um estudo transversal da Verleugnung - parte 2

(continuado do post anterior...)


Limitações de ordem prática nos impedem de fazer aqui um retorno atento a Sobre o narcisismo: uma introdução (Freud, 1914/1996), mas basta dizer que é possível, a partir deste texto, construir a hipótese segundo a qual, descontados os estereotipados coadjuvantes das fantasias neuróticas, os expedientes narcísicos disseminam-se também pelo continuum neurose-psicose, tendo seu ápice de explicitação certamente não em um terceiro pólo, mas talvez no represamento libidinal e conseqüente desligamento do mundo externo típico do campo psicótico.
Pois é assim, como o narcisismo, que aparecem em Neurose e psicose outros expedientes, ainda em caráter de suposição, que só aparentemente constituem exceções ao continuum. “Seria desejável saber”, escreve Freud, “em que circunstâncias e por que meios o [eu] pode ter êxito em emergir de tais conflitos, que certamente estão sempre presentes, sem cair enfermo” (Freud, 1924/1996, p. 170). É a partir desta busca pela saúde que surgem, ao invés disso, determinadas estratégias do eu: este evitará “uma ruptura em qualquer direção deformando-se, submetendo-se a usurpações em sua própria unidade e até mesmo, talvez, efetuando uma clivagem ou divisão de si próprio” (Ibid., p. 170). Freud está esboçando um caminho para pensar as “perversões sexuais” no mesmo nível que meras “incoerências” ou “excentricidades” (Ibid., p. 170): expedientes para evitar rupturas em direção a um dos pólos do continuum, entre os quais se situe inclusive o que quer que passe como normalidade. Formas intermediárias, digamos, de mal-estar.
Esta gama de soluções (deformações e clivagens) é, na verdade, bastante comum: dificilmente pode ser segregada do modo de funcionamento ordinário do eu. Em O ego e o id, Freud havia escrito:

Sempre que possível, [o eu] tenta permanecer em bons termos com o [isso]; veste as ordens Ics. do [isso] com suas racionalizações Pcs.; finge que o [isso] está mostrando obediência às admonições da realidade, mesmo quando, de fato, aquele permanece obstinado e inflexível; disfarça os conflitos do [isso] com a realidade e, se possível, também os seus conflitos com o [supereu]. Em sua posição a meio caminho entre o [isso] e a realidade, muito freqüentemente se rende à tentação de tornar-se sicofanta, oportunista e mentiroso, tal como um político que percebe a verdade, mas deseja manter seu lugar no favor do povo (Freud, 1923/1996, pp. 68-69).

Se mentira, oportunismo, incoerência, excentricidade são manifestações ocasionais de deformações e clivagens, são também vicissitudes inescapáveis: decorrem da posição mesma do eu na topografia inaugurada em 1923.
No segundo “apêndice” de O ego e o id, intitulado A perda da realidade na neurose e na psicose (Freud, 1924b/1996), o autor, em conformidade com esta linha de raciocínio, vai discutir a própria distinção qualitativa entre neurose e psicose.
Fica ainda mais claro, aqui, que são pólos de um continuum e, enquanto tal, meras abstrações: quanto mais as “neuroses” e “psicoses” tornam-se corporificadas e singularizadas, ou seja, quanto mais nos aproximamos da clínica, mais dificuldades encontramos para traçar distinções definitivas entre elas. A neurose, por exemplo, – e este é o argumento central do texto – não está isenta de conflitos com a realidade:

A distinção nítida entre neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade (Freud, 1924b/1996, p. 208).

Na medida em que se misturam – em relação a quanto “perdem” da realidade, por exemplo – os pólos deixam para trás, em seu lugar, instâncias mais gerais: “tanto a neurose quanto a psicose são, pois, expressão de uma rebelião por parte do [isso] contra o mundo externo” (Ibid., p. 206). Em termos de forças, os pólos tornam-se algo como desejo e frustração (ou, melhor ainda, censura, como frustração internalizada), e este conflito vai permear todas as soluções intermediárias, particulares, apenas precariamente recortadas e agrupadas sob os termos neurose e psicose.
Estas soluções, distribuídas pelo continuum, ganham também temporalidade quando Freud (1924b/1996) começa a pensar sobre as etapas tanto da neurose quanto da psicose. Traçando uma distinção entre o “começo da neurose” (Ibid., p. 205) e seus desdobramentos, e estendendo o raciocínio à psicose, abre caminho para uma mobilidade e um dinamismo muito maior em sua classificação (se é que o termo ainda se aplica, a esta altura). Uma primeira etapa da psicose, por exemplo, “arrastaria o [eu] para longe [...] da realidade” (Ibid., p. 206), mas seria sucedida por uma fase oposta, de recuperação da realidade, mesmo que pela via autocrática do delírio. Trata-se agora de um raciocínio por “processos” que são “acionados” e levados a cabo “contra forças que se lhe opõem violentamente” (Ibid., p. 207).
O novo esboço, portanto, estabelece um cenário constituído por um jogo de forças que leva em conta a contingência e a temporalidade dos processos em ação. Mecanismos defensivos variados operam, em toda a extensão do continuum, em resposta a uma pulsão que em determinado momento “faz uma arremetida para a frente” (Ibid., p. 207) ou a um fragmento de realidade que “se impõe à mente” (Ibid., p. 208). Qualquer solução, compromisso, desfecho “constitui apenas uma conciliação e não proporciona satisfação completa” (Ibid., p. 207). Passamos de entidades diagnósticas estáticas e exclusivas em determinado indivíduo a soluções temporárias, dinâmicas, complexas, que não são mutuamente exclusivas e que, a princípio, são possíveis em qualquer indivíduo particular.
Uma destas soluções, finalmente, é, na linguagem das perversões, o fetichismo.

(continua...) 

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