(continuado do post anterior...)
Limitações
de ordem prática nos impedem de fazer aqui um retorno atento a Sobre
o narcisismo: uma introdução
(Freud, 1914/1996), mas basta dizer que é possível, a partir deste
texto, construir a hipótese segundo a qual, descontados os
estereotipados coadjuvantes das fantasias neuróticas, os expedientes
narcísicos disseminam-se também pelo continuum
neurose-psicose, tendo seu ápice de explicitação certamente não
em um terceiro pólo, mas talvez no represamento libidinal e
conseqüente desligamento do mundo externo típico do campo
psicótico.
Pois
é assim, como o narcisismo, que aparecem em Neurose
e psicose outros expedientes, ainda
em caráter de suposição, que só aparentemente constituem exceções
ao continuum.
“Seria desejável saber”, escreve Freud, “em que circunstâncias
e por que meios o [eu] pode ter êxito em emergir de tais conflitos,
que certamente estão sempre presentes, sem cair enfermo” (Freud,
1924/1996, p. 170). É a partir desta busca pela saúde que surgem,
ao invés disso, determinadas estratégias do eu: este evitará “uma
ruptura em qualquer direção deformando-se, submetendo-se a
usurpações em sua própria unidade e até mesmo, talvez, efetuando
uma clivagem ou divisão de si próprio” (Ibid., p. 170). Freud
está esboçando um caminho para pensar as “perversões sexuais”
no mesmo nível que meras “incoerências” ou “excentricidades”
(Ibid., p. 170): expedientes para evitar rupturas em direção a um
dos pólos do continuum,
entre os quais se situe inclusive o que quer que passe como
normalidade. Formas intermediárias, digamos, de mal-estar.
Esta
gama de soluções (deformações e clivagens) é, na verdade,
bastante comum: dificilmente pode ser segregada do modo de
funcionamento ordinário do eu. Em O
ego e o id, Freud havia escrito:
Sempre que possível, [o eu] tenta permanecer em bons termos com o [isso]; veste as ordens Ics. do [isso] com suas racionalizações Pcs.; finge que o [isso] está mostrando obediência às admonições da realidade, mesmo quando, de fato, aquele permanece obstinado e inflexível; disfarça os conflitos do [isso] com a realidade e, se possível, também os seus conflitos com o [supereu]. Em sua posição a meio caminho entre o [isso] e a realidade, muito freqüentemente se rende à tentação de tornar-se sicofanta, oportunista e mentiroso, tal como um político que percebe a verdade, mas deseja manter seu lugar no favor do povo (Freud, 1923/1996, pp. 68-69).
Se
mentira, oportunismo, incoerência, excentricidade são manifestações
ocasionais de deformações e clivagens, são também vicissitudes
inescapáveis: decorrem da posição mesma do eu na topografia
inaugurada em 1923.
No
segundo “apêndice” de O ego e o
id, intitulado A
perda da realidade na neurose e na psicose
(Freud, 1924b/1996), o autor, em conformidade com esta linha de
raciocínio, vai discutir a própria distinção qualitativa entre
neurose e psicose.
Fica
ainda mais claro, aqui, que são pólos de um continuum
e, enquanto tal, meras abstrações: quanto mais as “neuroses” e
“psicoses” tornam-se corporificadas e singularizadas, ou seja,
quanto mais nos aproximamos da clínica, mais dificuldades
encontramos para traçar distinções definitivas entre elas. A
neurose, por exemplo, – e este é o argumento central do texto –
não está isenta de conflitos com a realidade:
A distinção nítida entre neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade (Freud, 1924b/1996, p. 208).
Na
medida em que se misturam – em relação a quanto “perdem” da
realidade, por exemplo – os pólos deixam para trás, em seu lugar,
instâncias mais gerais: “tanto a neurose quanto a psicose são,
pois, expressão de uma rebelião por parte do [isso] contra o mundo
externo” (Ibid., p. 206). Em termos de forças, os pólos tornam-se
algo como desejo e frustração (ou, melhor ainda, censura, como
frustração internalizada), e este conflito vai permear todas
as soluções intermediárias, particulares, apenas precariamente
recortadas e agrupadas sob os termos neurose e psicose.
Estas
soluções, distribuídas pelo continuum,
ganham também temporalidade quando Freud (1924b/1996)
começa a pensar sobre as etapas
tanto da neurose quanto da psicose. Traçando uma distinção entre o
“começo da neurose” (Ibid., p. 205) e seus desdobramentos, e
estendendo o raciocínio à psicose, abre caminho para uma mobilidade
e um dinamismo muito maior em sua classificação (se é que o termo
ainda se aplica, a esta altura). Uma primeira etapa da psicose, por
exemplo, “arrastaria o [eu] para longe [...] da realidade”
(Ibid., p. 206), mas seria sucedida por uma fase oposta, de
recuperação da realidade, mesmo que pela via autocrática do
delírio. Trata-se agora de um raciocínio por “processos” que
são “acionados” e levados a cabo “contra forças que se lhe
opõem violentamente” (Ibid., p. 207).
O
novo esboço, portanto, estabelece um cenário constituído por um
jogo de forças que leva em conta a contingência e a temporalidade
dos processos em ação. Mecanismos defensivos variados operam, em
toda a extensão do continuum,
em resposta a uma pulsão que em determinado momento “faz uma
arremetida para a frente” (Ibid., p. 207) ou a um fragmento de
realidade que “se impõe à mente” (Ibid., p. 208). Qualquer
solução, compromisso, desfecho “constitui apenas uma conciliação
e não proporciona satisfação completa” (Ibid., p. 207). Passamos
de entidades diagnósticas estáticas e exclusivas em determinado
indivíduo a soluções temporárias, dinâmicas, complexas, que não
são mutuamente exclusivas e que, a princípio, são possíveis em
qualquer indivíduo particular.
Uma
destas soluções, finalmente, é, na linguagem das perversões, o
fetichismo.
(continua...)
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