terça-feira, 24 de abril de 2012

Muito além da “perversão”: um estudo transversal da Verleugnung

O artigo a seguir foi rejeitado para publicação em um periódico de Psicanálise; talvez, pois, as ideias estejam ainda desencontradas. Mas acredito que valha para introduzir a questão: como pensar a Verleugnung dentro desta abordagem desconstrucionista da perversão que venho sugerindo nos posts? 



não se deve pensar que o fetichismo apresente um caso excepcional com referência à divisão do ego; trata-se simplesmente de um tema particularmente favorável para estudar a questão (Freud, 1938/1996, p. 217).

Um dos pontos de vista sobre a perversão em psicanálise toma-a como uma verdadeira estrutura clínica, cujo operador principal e espécie de delimitador de sua especificidade seria o mecanismo da Verleugnung. Uma posição radicalmente oposta à estrutural a este respeito é a de Barande (1980). Valorizando o caráter clínico da psicanálise, este autor faz uma crítica não só da categoria de perversão como também de toda e qualquer entidade diagnóstica:

A mesma chamada de atenção aplicar-se-ia, aliás, aos termos de: neurose, psicose, histeria, etc., de tal forma é manifesto que as preocupações nosográficas são fundamentalmente estranhas ao desenvolvimento psicanalítico logo que este se mantém fiel ao espírito da sua descoberta, o mais próximo possível da experiência clínica, único garante da sua especificidade (Barande, 1980, p. 163).

Isto nos coloca a tarefa de investigar as considerações nosográficas de Freud. Ele parece ficar entre uma visão e outra: deixou alguns esboços de classificação – que Barande (1980) interpreta como sendo meras “sistematizações didáticas” (Ibid., p. 163) – cujas fronteiras são bastante fluidas e que se organizam em torno de pólos entre os quais não se encontra a ‘perversão’.
Tomemos um destes esboços, aquele que delineia o contexto classificatório vigente na época do texto sobre o fetichismo, lido hoje como estabelecendo as bases de uma estrutura perversa. Depois da introdução da topografia psíquica de O ego e o id (Freud, 1923/1996), este esboço vai se insinuar através de dois textos que são como apêndices do livro de 1923. No primeiro deles, Neurose e psicose, Freud (1924/1996) situa, desde o título, os dois pólos entre os quais situará conflitos específicos. O pólo neurótico diz respeito a soluções de tensões entre o eu e o isso; o pólo psicótico, entre o eu e o mundo externo.
A hesitação de Freud quanto ao esboço, ao sugerir que a fórmula é, no máximo, uma solução geral e grosseira (Freud, 1924/1996, p. 167), indica que tais pólos são apenas abstrações, e que afecções específicas, mesmo as mais recorrentes e razoavelmente sistematizadas em sua obra – histeria, obsessão, paranóia, melancolia – transitarão na verdade por uma espécie de continuum entre tais pólos, assim como o que quer que se convencione chamar de normalidade.
É notável, e merece alguma explicação, que a tríade topográfica eu-isso-supereu vá constituir uma nosografia de dois pólos: isto se dá como conseqüência do caráter híbrido do supereu, que “une em si influências originárias tanto do [isso] quanto do mundo externo” (Ibid., p. 169). Assim, as tensões entre eu e supereu recairão também em pontos do continuum, mesmo que Freud (1924/1996) faça menção de agrupa-las sob o rótulo de “psiconeuroses narcísicas” (Ibid., p. 170), motivado muito mais por razões lógicas e teóricas do que clínicas. A instância superegóica não chega a motivar de forma decidida este hipotético terceiro pólo diagnóstico.
Vale lembrar a investigação destas tensões que havia empreendido em O ego e o id, onde está explícito que “os conflitos entre o [eu] e o ideal (...) em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno” (Freud, 1923/1996, p. 49). Foi ali que diferenciou duas formas de lidar com a culpa – “expressão de uma condenação do [eu] pela sua instância crítica” (Ibid., p. 63), ou ainda um índice da tensão eu-supereu – que constituem as mesmas e já familiares neurose obsessiva e melancolia, conforme a solução se desse às expensas do isso ou do mundo externo, respectivamente.

Em certas formas de neurose obsessiva, o sentimento de culpa é super-ruidoso (...) A análise acaba por demonstrar que o [supereu] está sendo influenciado por processos que permaneceram desconhecidos ao [eu]. É possível descobrir os impulsos reprimidos que realmente se acham no fundo do sentimento de culpa. Assim, nesse caso, o [supereu] sabia mais do que o [eu] sobre o [isso] inconsciente. (...) enquanto na melancolia o objeto a que a ira do [supereu] se aplica foi incluído no [eu] mediante identificação (Ibid., p. 64).

Na neurose obsessiva, pelo “fato de o objeto ter sido retido” (Ibid., p. 66), supõe-se que o que constituiu problema foram as pulsões: a tensão manifesta entre eu e supereu remete a uma tensão entre eu e isso. Na melancolia, ao contrário, o objeto foi incluído no eu, o que permitiu que este abandonasse um, supõe-se, problemático investimento no mundo externo: aqui é esse conflito com o exterior que origina a sintomática tensão entre eu e supereu. Aliás, Freud (1924/1996) indica em Neurose e psicose que a melancolia até então não estava separada “das outras psicoses” (Freud, 1924/1996, p. 170).
Um terceiro pólo, portanto, seja ele narcísico ou perverso, tem, até aqui, pouca consistência. O narcisismo como rótulo classificatório é particularmente enigmático, já que todas as tensões que perpassam a nova topografia têm o eu como ponto de referência. Um outro complicador é que este termo havia sido introduzido como conseqüência de uma dualidade pulsional anterior, que por sua vez motivara uma outra classificação: neuroses de transferência versus neuroses narcisistas, e estas últimas comportavam, com exceção talvez da melancolia, as mesmas afecções que vão constituir um pólo próprio no novo esboço classificatório, o da psicose.

(continua...)

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