O artigo a seguir foi rejeitado para publicação em um periódico de Psicanálise; talvez, pois, as ideias estejam ainda desencontradas. Mas acredito que valha para introduzir a questão: como pensar a Verleugnung dentro desta abordagem desconstrucionista da perversão que venho sugerindo nos posts?
não
se deve pensar que o fetichismo apresente um caso excepcional com
referência à divisão do ego; trata-se simplesmente de um tema
particularmente favorável para estudar a questão
(Freud, 1938/1996, p. 217).
Um
dos pontos de vista sobre a perversão em psicanálise toma-a como
uma verdadeira estrutura clínica, cujo operador principal e espécie
de delimitador de sua especificidade seria o mecanismo da
Verleugnung.
Uma posição radicalmente oposta à estrutural a este respeito é a
de Barande (1980). Valorizando o caráter clínico da psicanálise,
este autor faz uma crítica não só da categoria de perversão como
também de toda e qualquer entidade diagnóstica:
A
mesma chamada de atenção aplicar-se-ia, aliás, aos termos de:
neurose, psicose, histeria, etc., de tal forma é manifesto que as
preocupações nosográficas são fundamentalmente estranhas ao
desenvolvimento psicanalítico logo que este se mantém fiel ao
espírito da sua descoberta, o mais próximo possível da experiência
clínica, único garante da sua especificidade (Barande, 1980, p.
163).
Isto
nos coloca a tarefa de investigar as considerações nosográficas de
Freud. Ele parece ficar entre uma visão e outra: deixou alguns
esboços de classificação – que Barande (1980) interpreta como
sendo meras “sistematizações didáticas” (Ibid., p. 163) –
cujas fronteiras são bastante fluidas e que se organizam em torno de
pólos entre os quais não se encontra a ‘perversão’.
Tomemos
um destes esboços, aquele que delineia o contexto classificatório
vigente na época do texto sobre o fetichismo, lido hoje como
estabelecendo as bases de uma estrutura perversa. Depois da
introdução da topografia psíquica de O
ego e o id (Freud, 1923/1996),
este esboço vai se insinuar através de
dois textos que são como apêndices do livro de 1923. No primeiro
deles, Neurose e psicose,
Freud (1924/1996) situa, desde o título, os dois pólos entre os
quais situará conflitos específicos. O pólo neurótico diz
respeito a soluções de tensões entre o eu e o isso; o pólo
psicótico, entre o eu e o mundo externo.
A
hesitação de Freud quanto ao esboço, ao sugerir que a fórmula é,
no máximo, uma solução geral e grosseira (Freud, 1924/1996, p.
167), indica que tais pólos são apenas abstrações, e que afecções
específicas, mesmo as mais recorrentes e razoavelmente
sistematizadas em sua obra – histeria, obsessão, paranóia,
melancolia – transitarão na verdade por uma espécie de continuum
entre tais pólos, assim como o que quer que se convencione chamar de
normalidade.
É
notável, e merece alguma explicação, que a tríade topográfica
eu-isso-supereu vá constituir uma nosografia de dois pólos: isto se
dá como conseqüência do caráter híbrido do supereu, que “une
em si influências originárias tanto do [isso] quanto do mundo
externo” (Ibid., p. 169). Assim, as tensões entre eu e supereu
recairão também em pontos do continuum,
mesmo que Freud (1924/1996) faça menção de agrupa-las sob o rótulo
de “psiconeuroses narcísicas” (Ibid., p. 170), motivado muito
mais por razões lógicas e teóricas do que clínicas. A instância
superegóica não chega a motivar de forma decidida este hipotético
terceiro pólo diagnóstico.
Vale
lembrar a investigação destas tensões que havia empreendido em O
ego e o id, onde está explícito
que “os conflitos entre o [eu] e o ideal (...) em última análise
refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico,
entre o mundo externo e o mundo interno” (Freud, 1923/1996, p. 49).
Foi ali que diferenciou duas formas de lidar com a culpa –
“expressão de uma condenação do [eu] pela sua instância
crítica” (Ibid., p. 63), ou ainda um índice da tensão eu-supereu
– que constituem as mesmas e já familiares neurose obsessiva e
melancolia, conforme a solução se desse às
expensas do isso ou do mundo
externo, respectivamente.
Em
certas formas de neurose obsessiva, o sentimento de culpa é
super-ruidoso (...) A análise acaba por demonstrar que o [supereu]
está sendo influenciado por processos que permaneceram desconhecidos
ao [eu]. É possível descobrir os impulsos reprimidos que realmente
se acham no fundo do sentimento de culpa. Assim, nesse caso, o
[supereu] sabia mais do que o [eu] sobre o [isso] inconsciente. (...)
enquanto na melancolia o objeto a que a ira do [supereu] se aplica
foi incluído no [eu] mediante identificação (Ibid., p. 64).
Na
neurose obsessiva, pelo “fato de o objeto ter sido retido”
(Ibid., p. 66), supõe-se que o que constituiu problema foram as
pulsões: a tensão manifesta entre eu e supereu remete a uma tensão
entre eu e isso. Na melancolia, ao contrário, o objeto foi incluído
no eu, o que permitiu que este abandonasse um, supõe-se,
problemático investimento no mundo externo: aqui é esse conflito
com o exterior que origina a sintomática tensão entre eu e supereu.
Aliás, Freud (1924/1996) indica em Neurose
e psicose que a melancolia até
então não estava separada “das outras psicoses” (Freud,
1924/1996, p. 170).
Um
terceiro pólo, portanto, seja ele narcísico ou perverso, tem, até
aqui, pouca consistência. O narcisismo como rótulo classificatório
é particularmente enigmático, já que todas as tensões que
perpassam a nova topografia têm o eu como ponto de referência. Um
outro complicador é que este termo havia sido introduzido como
conseqüência de uma dualidade pulsional anterior, que por sua vez
motivara uma outra classificação: neuroses de transferência versus
neuroses narcisistas, e estas últimas comportavam, com exceção
talvez da melancolia, as mesmas afecções que vão constituir um
pólo próprio no novo esboço classificatório, o da psicose.
(continua...)
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