Da última vez dizíamos que o único critério possível para avaliar o caráter patológico de determinada configuração da sexualidade é seu grau de rigidez, fixação ou exclusividade. Pois bem, é bom lembrar que isto se aplica também à heterossexualidade monogâmica ou qualquer outro candidato a normalidade sexual que se apresente. Como Freud indicaria em uma de suas conferências, a genitalidade tradicional, ortodoxa, calcada na diferença sexual e na teleologia da reprodução da espécie não passa de mais uma "bem organizada tirania". Mas voltemos ao texto de 1905.
O último tema do primeiro dos três ensaios fortalece a impressão de que a perversão como era até então entendida está sendo universalizada, ou melhor, disseminada: trata-se da investigação explícita da relação entre neurose e perversão. A célebre fórmula que introduz, “a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão” (Freud, 1996 [1905], p. 157), faz Freud esboçar, por algumas páginas, um novo vocabulário, referindo-se às perversões e neuroses como, respectivamente, “perversões positivas e negativas” (Ibid., p. 159), insistindo assim na grande semelhança de moções pulsionais e processos em curso no que vinha sendo denotado por cada um dos termos. Quando se refere às “inclinações perversas que reinvindicam para a cavidade bucal e para o orifício anal um sentido sexual” (Ibid., p. 160), aliás, os exemplos cabem à histeria, uma neurose.
A fórmula tem uma direção precisa: não é a perversão que é o negativo da neurose, mas o contrário (Barande, 1980, p. 164). A ordem dos termos indica, por um lado, que a apropriação que Freud fez do termo ‘perversão’ esteve a serviço de sua investigação das neuroses. Por outro lado, o que é mais importante, que diluía a ‘perversão’ em um fundo pulsional de pura possibilidade, de onde poderiam originar-se tanto as neuroses quanto qualquer normalidade.
Assim, termina o ensaio insistindo na fluidez da demarcação entre patologia e normalidade. Para desfazer a impressão de que, “em virtude de sua predisposição, os psiconeuróticos aproximam-se estreitamente dos perversos em sua conduta sexual e se distanciam dos normais na mesma medida” (Freud, 1996 [1905], p. 161), sugere que “um grande abalo na vida talvez provoque a neurose até mesmo numa constituição corriqueira” (Ibid., p. 161), e conclui:
Ao demonstrar as moções perversas enquanto formadoras de sintomas nas psiconeuroses, aumentamos extraordinariamente o número de seres humanos que poderiam ser considerados perversos. Não é só que os próprios neuróticos constituam uma classe muito numerosa, há também que levar em conta que séries descendentes e ininterruptas ligam a neurose, em todas as suas configurações, à saúde (...). Assim, a extraordinária difusão das perversões força-nos a supor que tampouco a predisposição às perversões é uma particularidade rara, mas deve, antes, fazer parte da constituição que passa por normal. (...) há sem dúvida algo inato na base das perversões, mas esse algo é inato em todos os seres humanos (Ibid., p. 162).
O final do primeiro ensaio deixa muito clara a posição de Freud quanto à teorização das perversões. Por mais explícita e enfática que tenha sido sua crítica ao uso pejorativo do termo e à pressuposição de uma relação direta entre desvio do ‘normal’ – da genitalidade a serviço da reprodução – e patologia, a novidade que este momento inaugura pôde ser bastante negligenciada: ela é particularmente obscurecida e re-significada pela teoria do desenvolvimento psicossexual que motiva o ensaio seguinte, a meu ver particularmente vulnerável a interpretações reificadoras que transformam "como as coisas corriqueiramente se dão" em "como as coisas devem se dar".
Afinal, se o segundo ensaio investiga o agora novamente misterioso caminho que leva da perversão polimorfa infantil à genitalidade ortodoxa adulta, ele não deixa de marcar, a cada passo, o custo desse caminho, proporcional a sua inflexibilidade: sintomas, neurose, sofrimento.
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