Ler Rorty é uma coisa terapêutica; acho até que seus livros poderiam ser categorizados como de "auto-ajuda", não fosse este espaço dominado, antes, pelo fomento ao auto-engano narcisista e pela ortopedia egóica mais rasteira. Mas é que se há um ímpeto que atravessa suas ideias de uma ponta a outra, ele é, a meu ver, e em termos freudianos, o ímpeto de desbastamento de excessos superegóicos.
Um exemplo: o desejo de certeza parece ser o que alça as crenças à condição de verdade. É o desejo de alcançar a impossível "justificação última - justificação diante de Deus, ou diante do tribunal da razão, ao invés de justificação diante de meras e finitas audiências humanas" (Rorty, 2000 [1994], p. 44). E ocorre que tal desejo é o desejo de fugir de nós mesmos, da arbitrariedade da linguagem, da parcialidade de nossas necessidades e propósitos "e rumar para algo esplendidamente não-humano e não-relacional" (Ibid., p. 76); algo absoluto, inquestionável, certo. Divino, ideal.
Outro exemplo, mais direto, é sua abordagem da moralidade, numa conferência chamada, vejam vocês, Ética sem obrigações universais, onde esboça, com Dewey, abandonar os imperativos morais (categóricos) em prol da mera (será?) "necessidade de ajustar seu comportamento às necessidades de outros seres humanos" (Ibid., p. 99). Numa surpreendentemente lacaniana aproximação, Rorty sugere que a tendência de alguns kantianos de considerar esta proposta "perversa" ou "ingênua" só faz denunciar que nutrem a crença em uma natureza humana sádica, além de um certo masoquismo, ao se sujeitarem desnecessária e voluntariamente a obrigações imutáveis e incondicionais: verdades morais. Ele insiste, ao invés disso, que "a obrigação moral não tem uma natureza, ou uma fonte, diferente da tradição, do hábito e do costume" (Ibid., p. 104).
Mas se há um efeito colateral indesejável, a meu ver, do desbastamento superegóico que empreende é o que isto implica em termos de subestimação da pulsão de morte, que tem, afinal, no supereu uma sede privilegiada. Pela leitura que faz de Freud, uma leitura que parece ter passado ao largo da noção de ambivalência, Rorty conclui, por exemplo, que o "amor materno e paterno" seria suficiente, por engendrar confiança na criança, para evitar que um sujeito se torne, ao crescer, frio e egoísta.
Minha desconfiança a respeito dessa subestimação (e do humanismo que ela sustenta) talvez me coloque, nos termos de Rorty, entre os pós-modernos, aqueles que percebem um "pseudofascismo" de "elites corruptas" vivo e atuante nas "sociedades liberais modernas", e as consideram, portanto, "fatalmente comprometidas". Mas, como ele diz, e concordo, as diferenças entre pós-modernos e pragmatistas, com cuja fé na tecnologia e nas instituições democráticas simpatizo, aliás, são menos importantes que as diferenças entre ambos e o que chama de "ortodoxos":
Vejo o lado "ortodoxo" (as pessoas que pensam que expulsar os gays das forças armadas promove os valores tradicionais da família) como sendo composto por pessoas do mesmo tipo daquelas pessoas honestas, decentes, cegas e desastrosas que votaram em Hitler em 1933 (Ibid., p. 168).
Não é de surpreender, por sinal, que o ortodoxo - de orto (correto) e doxa (opinião) - seja adversário privilegiado daquele que, como Rorty, visa a diversidade e substitui a "correção" pelo acordo consensual. É este seu forte, enfim: a relativização, a dessacralização, mesmo, da verdade, da correção, da obrigação moral; sua denúncia do viés totalitário e da parcialidade de todas estas noções, por mais fundamentadas em legitimidades extra-linguísticas e extra-humanas - imaginárias - que se pretendam.
Já a esperança, se negadora da pulsão de morte, e os excessos de "autoconfiança", de fé na capacidade humana de "auto-criação" e "redescrição", deixemo-las para Lair Ribeiro.
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