A Verleugnung da morte já aparecera explicitamente, em textos
anteriores, vinculada à religião, que a partir de 1907 é tomada
como “neurose obsessiva universal” (Freud,
1907b/1996, p. 116). Em Reflexões
para os tempos de guerra e morte
(Freud, 1915/1996), a “concepção de uma vida que continua
após [a] morte aparente” (Freud, 1915/1996, p. 304), ou até a
mera “divisão do indivíduo em corpo e alma” (Ibid., p. 304),
que fornecem a matéria-prima a toda sorte de crença em “existências
pretéritas”, “transmigração das almas” ou “reencarnação”
(Ibid., p. 305), constituem uma “negação [Verleugnung] da
morte, (...) uma atitude ‘convencional e cultural’” (Ibid.,
p. 305). A relação persiste em O
futuro de uma ilusão (Freud,
1927b/1996), texto contemporâneo a Fetichismo: “a
religião (...) abrange um sistema de ilusões plenas de desejo
juntamente com um repúdio [Verleugnung] da realidade”
(Freud, 1927b/1996, p. 52).
O fato de esta divisão de atitudes poder ocasionalmente culminar em
uma neurose e ter papel central em fenômenos culturais tão
básicos e pregnantes quanto a religião desvencilha o mecanismo,
enfim, não só do campo da psicose, mas de qualquer captura
classificatória. Na raiz etimológica do termo, afinal, encontra-se
algo bastante cotidiano, a mentira: “-leugnen: Da raiz
indo-européia *leugh- (mentir)” (Hanns,
1996, p. 305). É fundamental que o uso banal, ordinário do
termo, na língua alemã, seja levado em conta para que se tenha
noção da amplitude de seu campo semântico: por exemplo, “quando
usado na forma reflexiva significa ‘mandar dizer que não se está
presente’” (Ibid., p. 303).
É certo que a disseminação da Verleugnung em Fetichismo
é algo tímida: permeará, no fim do texto, casos extremos (dignos
de Krafft-Ebing (1886/2000)), desde que, sendo Verleugnung da
castração, incida também uma “forte identificação com o pai”
(Freud, 1927/1996, p.159) que traga a “necessidade de executar a
castração” (Ibid., p. 159) para o primeiro plano. Encontramos aí,
no âmbito individual, o “comportamento do ‘couper
de nattes’ [cortador de tranças]”
(Ibid., p. 159) e, no âmbito cultural, o “costume chinês de
mutilar o pé feminino e, depois disso, reverenciá-lo” (Ibid., p.
160).
Por outro lado, a complexificação do fetichismo, especificamente,
abre desde então caminhos novos para a clínica. Uma das grandes
contribuições do texto é a indicação de que algo que opera na
criação de um fetiche é da mais clássica ordem do recalque,
quando incide também sobre a castração:
uma aversão, que nunca se acha
ausente em fetichista algum, aos órgãos genitais femininos reais,
permanece um stigma
indelebile da
repressão que se efetuou (Ibid.,
p. 157).
Esta complexificação se esboçava já nos Três Ensaios: “o
que leva à substituição do objeto pelo fetiche é uma conexão
simbólica de pensamentos que, na maioria das vezes, não é
consciente para a pessoa” (Freud, 1905/1996,
p. 146). Em uma nota acrescentada a esta obra em 1915, sugere
que pés e sapatos se configuravam como fetiches por uma detenção
da pulsão escopofílica “pela proibição e pelo recalcamento”
(Ibid., p. 147, nota 1).
Em 1927 a idéia move o texto, aparecendo já no primeiro exemplo,
bastante simples e, mesmo assim, considerado um caso “extraordinário”
(Freud, 1927/1996, p. 155):
Um jovem alçou certo tipo de
‘brilho do nariz’ a uma precondição fetichista. A explicação
surpreendente para isso era a de que o paciente fora criado na
Inglaterra, vindo posteriormente para a Alemanha, onde esquecera sua
língua materna quase completamente. O fetiche, originado de sua
primeira infância, tinha de ser entendido em inglês, não em
alemão. O ‘brilho do nariz’ [em alemão ‘Glanz
auf der Nase’] era
na realidade um ‘vislumbre (glance)
do nariz’. O nariz constituía assim o fetiche, que
incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que
não era perceptível a outros (Ibid., p. 155).
O que era “extraordinário” no caso é que
a clínica de um “fetichista”, uma personagem oitocentista
caricata, pudesse começar a se desdobrar através da análise do
fetiche. Este se tornava permeável à clínica na medida em que sua
significação era inconsciente – Freud (1927/1996) teve que
recorrer a uma língua que o analisando “esquecera
(...) quase completamente” para interpretá-lo. O ganho clínico
dependia justamente de que se lançasse outra luz, radicalmente
redescritiva, desconstrutivista até – uma que permitisse a
empatia, talvez dissesse Freud –, sobre uma entidade diagnóstica
marcada pelo selo da perversão.
O fetichismo não é o modelo para uma estrutura diagnóstica
específica, mas simplesmente uma dinâmica – até então meramente
englobada entre as perversões – que denuncia de forma privilegiada
o mecanismo universal da Verleugnung. Afinal, seria razoável
esperar que variedades da mentira se tornassem a regra num esboço
classificatório dinâmico fundamentado em um conflito permanente de
forças contrárias.
As sutilezas que diferenciam soluções específicas serão sempre, é
certo, investigadas na clínica, mas elas serão compreendidas em
função dos graus de prejuízo que acarretarem aos desejos,
por um lado, e às representações partilhadas de realidade, por
outro.
Esta aposta na contingência das soluções de compromisso, enfim, é o que move qualquer processo de análise, independente da captura classificatória a que pudesse estar sujeitado até então o analisando nela empenhado. Dentre estas capturas, é bem sabido hoje como fora pelo próprio Freud, ‘perversão’ é não só uma das mais impeditivas de um processo de análise como também uma das mais pura e simplesmente nocivas ao analisando, o que se deve certamente ao aspecto moral que, queiramos ou não, carrega consigo o termo.
Esta aposta na contingência das soluções de compromisso, enfim, é o que move qualquer processo de análise, independente da captura classificatória a que pudesse estar sujeitado até então o analisando nela empenhado. Dentre estas capturas, é bem sabido hoje como fora pelo próprio Freud, ‘perversão’ é não só uma das mais impeditivas de um processo de análise como também uma das mais pura e simplesmente nocivas ao analisando, o que se deve certamente ao aspecto moral que, queiramos ou não, carrega consigo o termo.
Referências:
Barande,
R. (1980). Poderemos nós não
ser “perversos”? Psicanalistas, ainda mais um esforço. Em
M’uzan, M. et al. A sexualidade
perversa. Lisboa: Veja.
Chasseguet-Smirgel,
J. (1991). Ética e
estética da perversão. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Freud,
S. Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago.
(1938/1996).
Esboço de psicanálise. Vol.
XXIII.
(1937/1996).
Construções em análise. Vol.
XXIII.
(1927/1996).
Fetichismo. Vol.
XXI.
(1927b/1996).
O futuro de uma ilusão. Vol.
XXI.
(1925/1996).
Algumas
conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.
Vol.
XIX.
(1925b/1996).
A negativa. Vol.
XIX.
(1924/1996).
Neurose e Psicose. Vol.
XIX.
(1924b/1996).
A perda da realidade na neurose e na psicose. Vol.
XIX.
(1923/1996).
O ego e o id. Vol.
XIX.
(1923b/1996).
A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da
sexualidade. Vol.
XIX.
(1915/1996).
Reflexões para os tempos de guerra e morte. Vol.
XIV.
(1914/1996).
Sobre o narcisismo: uma introdução.
Vol.
XIV.
(1907/1996).
Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Vol.
IX.
(1907b/1996).
Atos obsessivos e práticas religiosas. Vol.
IX.
(1905/1996).
Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Vol.
VII.
Hanns,
L. A. (1996). Dicionário
comentado do alemão de Freud.
Rio de Janeiro: Imago.
Helsinger,
L. A. (1996). O
tempo do gozo e a gozação.
Rio de Janeiro: Revan.
Krafft-Ebing,
R. V. (1886/2000). Psychopathia
Sexualis: as histórias de caso.
São Paulo: Martins Fontes.
Rudge,
A. M. (2004, agosto). Aspectos do discurso perverso.
Em Círculo
Psicanalítico de Minas Gerais (Org.), Revista
eletrônica do XIII Fórum Internacional de Psicanálise da IFPS.
Belo Horizonte. CD-ROM.
Valas,
P. (1990). Freud
e a perversão.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário