segunda-feira, 2 de julho de 2012

Muito além da “perversão”: um estudo transversal da Verleugnung - parte 5

(continuado de posts anteriores...)

 A Verleugnung da morte já aparecera explicitamente, em textos anteriores, vinculada à religião, que a partir de 1907 é tomada como “neurose obsessiva universal” (Freud, 1907b/1996, p. 116). Em Reflexões para os tempos de guerra e morte (Freud, 1915/1996), a “concepção de uma vida que continua após [a] morte aparente” (Freud, 1915/1996, p. 304), ou até a mera “divisão do indivíduo em corpo e alma” (Ibid., p. 304), que fornecem a matéria-prima a toda sorte de crença em “existências pretéritas”, “transmigração das almas” ou “reencarnação” (Ibid., p. 305), constituem uma “negação [Verleugnung] da morte, (...) uma atitude ‘convencional e cultural’” (Ibid., p. 305). A relação persiste em O futuro de uma ilusão (Freud, 1927b/1996), texto contemporâneo a Fetichismo: “a religião (...) abrange um sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com um repúdio [Verleugnung] da realidade” (Freud, 1927b/1996, p. 52).
O fato de esta divisão de atitudes poder ocasionalmente culminar em uma neurose e ter papel central em fenômenos culturais tão básicos e pregnantes quanto a religião desvencilha o mecanismo, enfim, não só do campo da psicose, mas de qualquer captura classificatória. Na raiz etimológica do termo, afinal, encontra-se algo bastante cotidiano, a mentira: “-leugnen: Da raiz indo-européia *leugh- (mentir)” (Hanns, 1996, p. 305). É fundamental que o uso banal, ordinário do termo, na língua alemã, seja levado em conta para que se tenha noção da amplitude de seu campo semântico: por exemplo, “quando usado na forma reflexiva significa ‘mandar dizer que não se está presente’” (Ibid., p. 303).
É certo que a disseminação da Verleugnung em Fetichismo é algo tímida: permeará, no fim do texto, casos extremos (dignos de Krafft-Ebing (1886/2000)), desde que, sendo Verleugnung da castração, incida também uma “forte identificação com o pai” (Freud, 1927/1996, p.159) que traga a “necessidade de executar a castração” (Ibid., p. 159) para o primeiro plano. Encontramos aí, no âmbito individual, o “comportamento do couper de nattes’ [cortador de tranças]” (Ibid., p. 159) e, no âmbito cultural, o “costume chinês de mutilar o pé feminino e, depois disso, reverenciá-lo” (Ibid., p. 160).
Por outro lado, a complexificação do fetichismo, especificamente, abre desde então caminhos novos para a clínica. Uma das grandes contribuições do texto é a indicação de que algo que opera na criação de um fetiche é da mais clássica ordem do recalque, quando incide também sobre a castração:

uma aversão, que nunca se acha ausente em fetichista algum, aos órgãos genitais femininos reais, permanece um stigma indelebile da repressão que se efetuou (Ibid., p. 157).

Esta complexificação se esboçava já nos Três Ensaios: “o que leva à substituição do objeto pelo fetiche é uma conexão simbólica de pensamentos que, na maioria das vezes, não é consciente para a pessoa” (Freud, 1905/1996, p. 146). Em uma nota acrescentada a esta obra em 1915, sugere que pés e sapatos se configuravam como fetiches por uma detenção da pulsão escopofílica “pela proibição e pelo recalcamento” (Ibid., p. 147, nota 1).
Em 1927 a idéia move o texto, aparecendo já no primeiro exemplo, bastante simples e, mesmo assim, considerado um caso “extraordinário” (Freud, 1927/1996, p. 155):

Um jovem alçou certo tipo de ‘brilho do nariz’ a uma precondição fetichista. A explicação surpreendente para isso era a de que o paciente fora criado na Inglaterra, vindo posteriormente para a Alemanha, onde esquecera sua língua materna quase completamente. O fetiche, originado de sua primeira infância, tinha de ser entendido em inglês, não em alemão. O ‘brilho do nariz’ [em alemão ‘Glanz auf der Nase’] era na realidade um ‘vislumbre (glance) do nariz’. O nariz constituía assim o fetiche, que incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível a outros (Ibid., p. 155).

O que era “extraordinário” no caso é que a clínica de um “fetichista”, uma personagem oitocentista caricata, pudesse começar a se desdobrar através da análise do fetiche. Este se tornava permeável à clínica na medida em que sua significação era inconsciente – Freud (1927/1996) teve que recorrer a uma língua que o analisando “esquecera (...) quase completamente” para interpretá-lo. O ganho clínico dependia justamente de que se lançasse outra luz, radicalmente redescritiva, desconstrutivista até – uma que permitisse a empatia, talvez dissesse Freud –, sobre uma entidade diagnóstica marcada pelo selo da perversão.
O fetichismo não é o modelo para uma estrutura diagnóstica específica, mas simplesmente uma dinâmica – até então meramente englobada entre as perversões – que denuncia de forma privilegiada o mecanismo universal da Verleugnung. Afinal, seria razoável esperar que variedades da mentira se tornassem a regra num esboço classificatório dinâmico fundamentado em um conflito permanente de forças contrárias.
As sutilezas que diferenciam soluções específicas serão sempre, é certo, investigadas na clínica, mas elas serão compreendidas em função dos graus de prejuízo que acarretarem aos desejos, por um lado, e às representações partilhadas de realidade, por outro.
Esta aposta na contingência das soluções de compromisso, enfim, é o que move qualquer processo de análise, independente da captura classificatória a que pudesse estar sujeitado até então o analisando nela empenhado. Dentre estas capturas, é bem sabido hoje como fora pelo próprio Freud, ‘perversão’ é não só uma das mais impeditivas de um processo de análise como também uma das mais pura e simplesmente nocivas ao analisando, o que se deve certamente ao aspecto moral que, queiramos ou não, carrega consigo o termo.



Referências:
Barande, R. (1980). Poderemos nós não ser “perversos”? Psicanalistas, ainda mais um esforço. Em M’uzan, M. et al. A sexualidade perversa. Lisboa: Veja.
Chasseguet-Smirgel, J. (1991). Ética e estética da perversão. Porto Alegre: Artes Médicas.
Freud, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
(1938/1996). Esboço de psicanálise. Vol. XXIII.
(1937/1996). Construções em análise. Vol. XXIII.
(1927/1996). Fetichismo. Vol. XXI.
(1927b/1996). O futuro de uma ilusão. Vol. XXI.
(1925/1996). Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. Vol. XIX.
(1925b/1996). A negativa. Vol. XIX.
(1924/1996). Neurose e Psicose. Vol. XIX.
(1924b/1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. Vol. XIX.
(1923/1996). O ego e o id. Vol. XIX.
(1923b/1996). A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Vol. XIX.
(1915/1996). Reflexões para os tempos de guerra e morte. Vol. XIV.
(1914/1996). Sobre o narcisismo: uma introdução. Vol. XIV.
(1907/1996). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Vol. IX.
(1907b/1996). Atos obsessivos e práticas religiosas. Vol. IX.
(1905/1996). Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Vol. VII.
Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.
Helsinger, L. A. (1996). O tempo do gozo e a gozação. Rio de Janeiro: Revan.
Krafft-Ebing, R. V. (1886/2000). Psychopathia Sexualis: as histórias de caso. São Paulo: Martins Fontes.
Rudge, A. M. (2004, agosto). Aspectos do discurso perverso. Em Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (Org.), Revista eletrônica do XIII Fórum Internacional de Psicanálise da IFPS. Belo Horizonte. CD-ROM.
Valas, P. (1990). Freud e a perversão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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