quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O dualismo linguagem/corpo

Foto por Lil Miss Sunshine 09.
Um último ponto de estranheza no posfácio de Butler é a forma como reedita um certo cartesianismo que toma como dado em Austin: “the body is the vehicle for the speech act” (1) (Butler in Felman, 2003 [1980], p. 119). Tal dualismo parece leva-la a considerar o ato de fala como uma verbalização (Ibid., p. 118), e ainda a eleger o corpo como a garantia de infelicidade do performativo: “the body in its sexuality guarantees the failure of the speech act” (2) (Ibid., p. 115). É uma forma estranha de ler a “doutrina da infelicidade” de Austin, já que este parte justamente de um questionamento desta dualidade corpo/linguagem. A linguagem, em Austin, é linguagem-“corpo”, linguagem-pulsão (Rudge, 1998, pp. 94-99). Evitar esta cisão, que torna possível pensar no “corpo” como “veículo” do ato, é em que Austin insiste, e é assim que tomo sua célebre conclusão:


The total speech act in the total speech situation is the only actual phenomenon which, in the last resort, we are engaged in elucidating (3) (Austin, 2000 [1962], p. 148).

Esta proposta, que Derrida levou mais a sério do que o próprio Austin (derivando toda uma crítica à noção de “contexto exaustivamente determinável” na qual, segundo ele, Austin acreditava), parece ter passado ao largo de Butler, que ainda consegue conceber um ato de fala ideal, dissociado do “corpo”, da infelicidade, do famigerado “contexto” (seria melhor dizer “momento” ou “atualidade do discurso”, talvez). Seria esta fala ideal, que Austin não faz senão problematizar o tempo todo, um reflexo do “campo referencial já constituído”, primo-irmão de uma certa versão do Simbólico?

De qualquer forma, este dualismo linguagem/corpo pode ser ainda visto como um parente do dualismo que Austin trabalha explicitamente (para, bem entendido, fali-lo): o próprio dualismo constativo/performativo. Entender a linguagem como um discurso que transcende o ato (ou o “corpo”): isso é constatividade. O constativo aponta para o que está lá, de qualquer forma, o fato, o dado, o inequívoco, o óbvio, o verdadeiro. Ele aponta, em última instância, para o que prescinde do humano. Falir esta distinção, então, é, de forma plenamente pragmática, escolher ler humanidade em qualquer constativo.

Transbordar performatividade por todos os lados: eis o que Butler hesita em fazer. E por que eu dizia que esta hesitação tem fortes efeitos identitários

Ora, o tema que tornou Butler uma excelente referência no pensamento contemporâneo foi a identidade de gênero e seus reflexos na abordagem da sexualidade dita heterodoxa, em particular o homoerotismo. Trata-se de uma autora crítica, vanguardista e engajada; uma ativista da diversidade sexual. Mas sua leitura estruturalista de Austin às vezes parece fazer parte de uma estratégia defensiva que acaba reificando, seletivamente, marcas identitárias. 

Se voltarmos ao texto do qual parti, The psychic life of power, encontramos a seguinte crítica do ainda insuficiente compromisso entre diversidade e "regulação" nos esforços contemporâneos de tolerância sexual nas forças armadas:

To say “I am a homosexual” is fine as long as one also promises “and I don´t intend to act.” (...) But that performative utterance, however compelled, will be subject to infelicity (4) (Butler, 1997, p. 82).

O que pergunto é: qual dos performativos? Pois se a infelicidade estrutural da promessa - que, aliás, é na verdade mais presente quanto mais obrigatória tenha sido - é o instrumento de que o sujeito dispõe para se opor ao poder que lhe compele à renúncia, parece-me que o "curto-circuito do poder regulatório" (Ibid., p. 82) só se dá pela infelicidade não só da promessa, mas também do vereditivo que a precede. 

Ou seja, o que Butler negligencia aqui é que dizer “eu sou homossexual” - ou "heterossexual" - também é um performativo, sujeito à infelicidade constitutiva tal qual a promessa a que dá relevo. Considerar infelizes as afirmações - contingentes, datadas e reducionistas -,  toma-las como atos, não seria essa a mais radical resistência ao poder regulatório, que exige uma distinção identitária estrutural entre o sargento heterossexual e o recruta homossexual? 

Voltando ao dualismo linguagem/corpo, em se tratando de sexualidade, não há raiz Real para o desejo: corpo é linguagem; trata-se, em ambos, de pulsão. Aquela, perversa e polimorfa, que, diz Freud, não tem qualidade alguma

Enfim, quando digo que a leitura estruturalista de Austin, ou a salvaguarda da locucionaridade e do referente - corporal, orgânico ou genético - do desejo é uma estratégia defensiva, é porque ela não é capaz de questionar a regulação da sexualidade, mas só de incluir, por exemplo, o homoerotismo, desde que domesticado, numa renovada, mas não menos excludente nem identitária, ortodoxia sexual.

É pouco, a meu ver. A opção, agarrar as questões de gênero pelos chifres - a começar pelo questionamento da diferença sexual -, nos deixa vulneráveis, sem dúvida: órfãos de identidade. Mas isso nos torna não um nada, um vazio, um furo (como rezam os estruturalistas), mas sim qualquer coisa, ou uma coisa qualquer, uma singularidade qualquer. Vulneráveis a quê, então? À liberdade, talvez; à contingência da performatividade, certamente. Causam uma certa vertigem, mas acredito que valham a pena.

Notas:

(1) "o corpo é o veículo para o ato de fala".

(2) "o corpo, em sua sexualidade, garante o fracasso do ato de fala"

(3) "o ato de fala total na situação total de discurso é o único fenômeno real que, em última instância, estamos engajados em elucidar"

(4) "Tudo bem em dizer 'eu sou um homossexual', desde que também se prometa 'e eu não pretendo agir'. (...) Mas essa enunciação performativa, por mais forçada que tenha sido, estará sujeita à infelicidade"

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