segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A medicalização da sexualidade (heterodoxa)

Foto por Francisco Javier Argel.

Circulou um hoax um tempo atrás sobre o Hetracil, droga que "curaria" a "homossexualidade". Fiquei sabendo pelo blog do Felipe Lisboa, onde rendeu, mesmo sendo paródia, uma boa reflexão. Pois bem, esbarrei depois com uma ou outra notícia que me lembrou o assunto, e que indica que, de fato, onde há fumaça, há fogo; a paródia só é efetiva, revoltando ou divertindo, por estarmos a um passo, mesmo, da era da medicalização da sexualidade. Heterodoxa, claro.

Tomemos esta matéria, da Folha, sobre o tratamento da pedofilia, particularidade do desejo que melhor demonstra o quão viva está a interseção oitocentista entre sexualidade, Medicina e Poder Judiciário, e o quanto ainda precisamos pensá-la criticamente. Não há melhor ilustração do tipo de concessão a que se obrigou a Psiquiatria, ao se aproximar do Poder Judiciário, do que o fato de existir uma Associação (Psiquiátrica) de Tratamento de Ofensas Sexuais. Tratamos ofensas? Crimes, abusos? Achei que tratássemos, essencialmente, sofrimentos.


Mas, vejam bem, é que pedófilos são "tipos imaturos e solitários", que sofrem, na verdade, de "falta de habilidade social". É esta psicologização reducionista do crime, já dizia Foucault, que abre caminho - e depois, como um atalho que perdeu sua utilidade, sai de cena - para que passemos a tratar infrações como doenças, e daí curá-las. Com remédios, claro.

Mas que remédios? A Folha não diz, até porque nós, leitores, não queremos saber. Esperamos ansiosamente pelo milagre, sem ter que pensar muito sobre o assunto, tão desagradável. Queremos apenas aplacar a angústia e saber que há tratamento medicamentoso para a pedofilia. Queremos o Pedoficil, na esteira do sucesso do Mal-criadil, também conhecido como Ritalina.

Mas a Revista Viver Brasil entra em detalhes, mesmo que a partir, antes de mais nada, das angústias da sociedade, e não do "paciente": trata-se com ansiolíticos e antidepressivos, já que a castração química hormonal é inconstitucional - fato que alguns lamentam. O que se está tratando, então, é a ansiedade e a depressão, sob a hipótese, portanto, de que sejam determinantes importantes deste comportamento - criminoso - específico. Algo já muito diferente de tratar medicamentosamente a pedofilia em si, e mesmo de entendê-la como uma patologia.

Mas, vejam bem, isto é remar contra a maré. O que queremos, já o disse, é o Pedoficil, a impossível prevenção da periculosidade que paira pela pulsionalidade de todos nós, fundamentalmente polimorfa; o que o Poder Judiciário quer é a "cura" da infração; o que a Medicina quer é essa fatia de mercado. Parte-se, portanto, sempre, da pedofilia, e não do sujeito. Do ato, e não da história pessoal. Do crime, real ou potencial, e não do sofrimento.

E mantido este curto-circuito, que alija o sofrimento - e as discussões, por exemplo, sobre a egodistonia ou não de qualquer comportamento - não se medicaliza impunemente, ou seja, sem ratificar o neomoralismo da normatização da sexualidade heterodoxa, como um todo. Um psiquiatra forense passa a defender que "trata-se de deformidade moral, psicológica e antinatural: é o sexo sem função de reprodução ou preservação de espécie", reeditando, sem tirar nem pôr, mas agora sobre um bode expiatório plenamente unânime - o pedófilo -, o tipo de pressuposição religiosa que, desde Krafft-Ebing, visa relegar o homoerotismo à categoria de "perversão" e de patologia. O mesmo psiquiatra, aliás, que, diz a Revista, "não descarta a relação entre pedofilia e homossexualidade". Ora, mas que surpresa.

Resumindo, então, que nossa revolta contra a possibilidade de um Hetracil, e nosso riso diante do absurdo que representa, considere a possibilidade de que ele seja parte de um pacote medicamentoso mais amplo, e que nos perguntemos o quanto andamos demandando à Medicina outros produtos deste mesmo kit, como o Perversil e o Anormalil.

Feliz dia do psicólogo aos colegas e aos que porventura já tenham algum dia se beneficiado do laborioso cuidado no qual insistimos em nos engajar. Boa semana e até a próxima!

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