terça-feira, 13 de novembro de 2012

A questão da "escolha" homossexual

Foto por Leonardo Lina.

Ontem uma coluna em uma revista de grande circulação - o que por si só causa-me incredulidade, dado seu enviesamento reacionário - causou polêmica ao comparar homossexualidade a zoofilia, entre outros absurdos de verniz liberal, racional e legalista, mas, como sempre, pressupostos profundamente moralistas e medievalmente religiosos. Não queria divulgar discursos tão perniciosos, mas pra não falar sem contexto, eis um link.
Daria pra dissecar esse texto a partir de tudo por que já transitamos por esse blog, particularmente Foucault, Lanteri-Laura e Davidson, mas, sinceramente, não estou com paciência. Deixo apenas a indicação de que o argumento legalista contra o casamento de pessoas do mesmo sexo desconsidera a fundamentação arbitrária, baseada em tradições religiosas, da regulamentação legal do casamento. É muito estranho ter que lembrar a um sujeito desses, que se diz liberal e racional, que sua definição de casamento deixaria de fora um homem e uma mulher estéreis que adotassem uma criança. Casamento, afinal, segundo ele, só para casais procriadores, daí heterossexuais.


Como disse, já me faz muito mais questão hoje em dia não só como ainda há gente reproduzindo esse tipo de discurso moralista, irracional e perseguidor, mesmo com todo o verniz de aparente razoabilidade que se dê a ele, como também, e principalmente, como ainda é alta a receptividade a essa espécie de porcaria. Este autor específico, talvez seja religioso e confunda o que aprendeu no catecismo com as leis que promovem o estado democrático de direitos, talvez tenha paúra de seu próprio potencial à escolha homossexual de objeto e dele se defenda, atacando os que, ao contrário dele, convivem melhor com sua participação nessa possibilidade tão humana de investimento, vai saber. 

Mas quantos compram esta revista? Quantos a leem regularmente, a assinam? Quantos chancelam esse moralismo "clean", "esclarecido"? Esse ódio envernizado? Incontáveis...

Enfim, voltando ao que interessa, o pior de tudo, acho, é que o texto começa bem, tentando desnaturalizar a escolha de objeto. Já defendi isso aqui, e acredito ser uma das ideias menos populares de Freud nesses tempos estratégicos, tempos de guerra mesmo. Mas continuo achando, sob o risco da impopularidade, que é fundamental não jogarmos fora a criança junto com a água do banho ao defendermos a cidadania LGBT.

Fico com uma pulga atrás da orelha quando, por exemplo, o Deputado Jean Wyllys, verdadeiro herói da resistência ao moralismo, responde à coluna em questão ratificando o contra-discurso que naturaliza a escolha homoerótica: ninguém decide ser homossexual, a atração por pessoas do mesmo sexo é algo que se sente desde sempre etc. É o que, a meu ver, esboçou fazer também, na melhor das intenções, há um tempo atrás, Contardo Calligaris, em sua coluna de jornal.

Repito: isso pode ser tático, mas não é estratégico. Na defesa dos direitos, a curto prazo, pode funcionar bem, mas a longo prazo é mais do mesmo, é discurso segregacionista, é naturalização de algo histórico. Não, ninguém nasce homossexual, como também ninguém nasce heterossexual. A sexualidade é um mosaico que tem como matéria-prima a história de vida de cada um, as experiências de prazer, dor e gozo, os traumas, as sanções sociais, os ímpetos à vida e à morte, os investimentos, as frustrações, as elaborações e, sim, as escolhas.

O que me ocorreu a respeito, e motivou este retorno ao blog, talvez promova algum consenso: acontece que a conotação do termo "escolha" pode ser ou não psicanalítica. Então, pra esclarecer, a psicanálise concebe o ser humano como um ser que escolhe, sim; disso faz parte todo o profundo respeito à alteridade e à autonomia que os bons analistas pregam e praticam. No entanto, as escolhas do bicho homem não são, em sua grande maioria, conscientes, nem deliberadas, nem pontuais. Quando falamos em escolha de objeto estamos falando de um ato intencional, sim, mas inconsciente, e fruto - decorrência, vejam, o que é diferente da "naturalidade", do "dado", da genética, da estrutura inata - de toda uma história de vida.

Acredito que estas ideias, promotoras de liberdade com responsabilidade, tenham sua sombra nas propostas evangélicas de "tratamento" da homossexualidade - é o que motiva, por sinal, a coluna supracitada de Calligaris. O liberalismo freudiano - esse sim presta, aliás - tornaria a proposta de "cura gay" - que, claro, não é tratamento, mas sim conversão, doutrinamento, ortopedia psíquica com fundamentos arbitrários e violadores da alteridade e potencialmente também da autonomia - algo implementável. Mas, calma, ainda torpe e indesejável.

Então, há aí também uma escolha. Para tentarmos nos defender da possibilidade de lavagem cerebral, da "cura gay" evangélica, estamos apelando à naturalização da escolha de objeto. Com isso, jogamos pelo ralo o que impede decisivamente que o homoerotismo seja entendido como uma estrutura, um destino; o que impede que o homoerotismo seja capturado em um "tipo", inclusive patologizável; o que impede, eis o mais grave, que o heteroerotismo, por outro lado, seja legitimado como natureza humana, como padrão, como evidência estatística enraizada em dados biológicos inatos e imutáveis.

Continuo, apenas, perguntando: vale a pena?

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