O campo da Psicologia nasce de uma tensão inerente ao paradigma
dualista da modernidade: a cisão entre mente e corpo, que de certa forma
reflete a cisão entre sujeito e objeto, se legitima o objeto
psicológico, que é, paradoxalmente, o sujeito, o faz pela via do
negativo, pois é a mente que não é transparente a si própria, e nem tão
autônoma quanto se gostaria que fosse, ou seja, o sujeito que insiste em
ser, simultaneamente, objeto, o que vai ser apropriado pela nova
ciência.
Isto se evidencia desde os experimentos de
Helmholtz sobre o tempo de reação, que buscavam relações constantes
entre estímulos e respostas motoras, expectativa calcada na objetividade
da fisiologia. Já aí os resultados variavam tanto, não só de indivíduo a indivíduo, mas também no mesmo indivíduo em diferentes momentos, que Helmholtz abandonou a pesquisa. Mas foi este "fracasso" que abriu o
nicho onde em seguida floresceria a psicofísica e, finalmente, a
Psicologia wundtiana.
A Psicologia ocupa esta lacuna
inicialmente no intuito de obturá-la; esta é sua via de ingresso no rol
das ciências. O espaço entre o estímulo e a resposta será então suturado
por equações logarítmicas, como a de Fechner, ou povoado de variáveis
definidas operacionalmente, medidas e estatisticamente tratadas. Os
primeiros métodos do conhecimento psicológico, por exemplo, a
introspecção, que exigia árduo treinamento, revelam ainda a consonância
entre a nova ciência e os ideais epistemológicos da modernidade, ambos
em busca de um sujeito pleno, autônomo e transparente a si próprio.
Mas este espaço aberto pelas
limitações do projeto epistemológico moderno, que na filosofia foi
ocupado, por exemplo, por Nietzsche e pelos pragmatistas americanos,
entre outros, na Psicologia o foi mais decisivamente por Freud. E mais decisivamente
justamente por não tentar tamponá-lo, este espaço, mas sim, pelo
contrário, da familiaridade com ele passar a questionar a própria noção
de que possa haver um saber ou uma epistemologia que não sejam
irremediavelmente marcados pela pulsionalidade do sujeito do
conhecimento.
E é justamente deste questionamento que
deriva a própria possibilidade da(s) Psicologia(s) se constituir como
campo heterogêneo, povoado pelas mais diversas teorias, métodos e
posições epistemológicas (ou mesmo pós-epistemológicas). É ainda, sendo
parte de um movimento filosófico mais amplo - que tem expoentes em
Heidegger, Foucault, Derrida, Deleuze, Habermas e Rorty, entre outros -
responsável por um certo deslocamento das pretensões epistemofílicas em
direção à reflexão ética.
Pois o que a pulsionalidade do
homem de ciência indica é também, como fazem estes autores, que teorias e
linguagens não são meros instrumentos de representação de uma realidade
estanque, e sim dispositivos que a criam, e constituem nossa
experiência ao descrevê-la. A pulsão de saber, como dizia Freud, é
componente da pulsão de dominação.
Neste sentido é que a
discussão ética toma precedência como preocupação filosófica
contemporânea: a que tipo de práticas, de mundo, de subjetividade,
enfim, levam as teorias e escolas às quais nos filiamos? De onde tais
vertentes se desenvolveram, que espaço ocupam e a que demanda
sociocultural respondem?
O quanto elas contribuem, enfim, na reificação dos mecanismos de poder? E
o quanto ainda se apegam à esperança de suturar a modernidade,
positivar o humano ou disciplinar os corpos?
Nenhum comentário:
Postar um comentário