segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Freud implica (4)

"O narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O encanto de uma criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu autocontentamento e inacessibilidade, assim como também o encanto de certos animais que parecem não se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes animais carniceiros. Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que os diminua" (Freud, 1996 [1914], p. 95-96).

Este é de "Sobre o narcisismo", de 1914.

Este texto é denso e considerado crucial no desenvolvimento da metapsicologia freudiana. Mas esse trecho é raramente citado, e pra mim ele fala muito; vou tentar explicar.

O contexto é Freud fazendo a diferenciação entre dois tipos básicos de amores: amor ao outro e amor a si próprio. O escopo do amor a si próprio vai sendo ampliado de tal forma que fica difícil conceber qualquer amor que não carregue algum "estigma narcisista", como ele diz. O amor ao outro pode tomar feições narcísicas, por exemplo, quando se ama o que se gostaria de ser, ou quando se ama alguém que o completará, ou quando se ama alguém ou algo que faz parte de si ou é seu produto (algo particularmente frequente no mais corriqueiro amor de pais por seus filhos).

Pois bem, dado que o narcisismo é um estigma tão influente nas relações humanas, a genialidade deste trecho está em desconstrui-lo. Porque aqui Freud faz uma lista de candidatos a narcisistas verdadeiros (aqueles que só amam a si próprios), e ela acaba sendo uma lista não de sujeitos, mas de objetos: um desfile de seres que nos encantam e atraem nosso interesse porque supomos que são auto-suficientes e inacessíveis.

Não sei se me fiz entender, mas percebam: o trecho é todo escrito na primeira pessoa do plural. Quem somos "nós" que nos fascinamos com o suposto autocontentamento das crianças, que nos interessamos por personagens literários narcisistas, que admiramos aqueles que parecem não se importarem conosco? Ora, somos nós, os humanos, que renunciamos, inescapavelmente, a uma parte de nosso próprio (e mítico) narcisismo.

Ou isso ou Freud estava aqui começando a se aventurar no psiquismo dos grandes animais carniceiros, estes narcisistas, e desistiu antes que pudesse escrever suas recomendações para a zooanálise. Acho pouco provável.

Pra mim é surpreendente, pois, que o narcisismo tenha se tornado uma categoria diagnóstica na psicanálise contemporânea - como era, aliás, no século XIX, antes que Freud o abordasse e o transformasse em um mecanismo absolutamente disseminado, demasiadamente humano. É que a beleza está nos olhos do observador - e a plenitude e o "narcisismo" também.

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