quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O "eu" em Austin


Estamos analisando, a partir de uma certa crítica de Judith Butler (análoga a uma de Derrida), o estatuto do sujeito falante, performativo, na Teoria dos Atos de Fala de John Langshaw Austin. Parece-me que Austin, diversamente da concepção filosófica tradicionalmente iluminista e racionalista, pressupõe um sujeito nada soberano, mesmo que também nada alienado à constatividade.


Há um momento no percurso de Austin, retratado em How to do things with words, onde ele procura uma fórmula para o performativo, de modo a diferencia-lo definitivamente do constativo. É aí que sugere que todo performativo deveria poder ser transformado (reduzido?) (1) em uma frase na primeira pessoa do singular do presente do indicativo: eis o “eu” (e o “agora”). De “cuidado!” derivaríamos “eu o advirto”, de um verbo no imperativo derivaríamos “eu o ordeno”, de qualquer constativo derivaríamos, enfim, “eu afirmo”. As segundas versões o filósofo chama de “performativos explícitos”.

Se Austin tivesse se contentado com isto seria difícil salva-lo da crença na possibilidade de um "eu" plenamente soberano - teria tomado um caminho análogo ao dos Psicólogos do Ego, que levam a excessos ortopédicos a diretriz clínica freudiana de fazer surgir (também) Eu onde antes havia (apenas) Isso (2). 

No entanto, o empreendimento austiniano de fazer uma lista de verbos performativos explícitos falha, e este é seu papel fundamental na chamada Teoria dos Atos de Fala. Pois o que falha aqui é também a possibilidade de distinguir definitivamente performativo e constativo. Não há critério unívoco possível para tal, e, portanto, passa a não fazer sentido a discussão a respeito da anterioridade ou não da constatividade sobre a performatividade - que imagino, do alto de minha ignorância, sem ironia, que reflita a discussão psicanalítica e filosófica, entre estruturalistas e pragmáticos, talvez, a respeito da anterioridade ou não do significante sobre a pulsionalidade. 

Mas enfim, voltando ao "eu", a distinção austiniana constativo-performativo torna-se uma distinção pragmática, entre dimensões de análise do discurso. E a dimensão ilocucionária, mais performativa, de análise - análise da intencionalidade do sujeito falante - é aposteriorística, e divorciada da deliberação, essencialmente constativa e consciente; e é divorciada dela mesmo quando a análise é feita pelo próprio sujeito que agiu. Não entendo, então, como se pode ter a impressão de que o “eu” austiniano sabe exatamente o que está fazendo ao agir, ou que necessariamente se representa, como pré-condição à performatividade, em seu ato. Pelo contrário, aqui, como em Freud (e Goethe), "no princípio foi Ato" (3).

A primazia do ato não implica a primazia do "eu", é isso. O próprio Austin em ato não poderia ser menos soberano: aposta, promete até, investe (obsessivamente, pode-se dizer), falha, volta atrás, prolifera contra-exemplos para cada pequeno pedaço de conclusão candidato à certeza. Termina sem concluir, ainda esboçando possibilidades, e o que deixa atrás de si é só um percurso, nada soberano, mas plenamente performativo e fértil.

O que há, em termos de soberania mínima, é, na verdade, o simples respeito à alteridade, ou a salvaguarda do direito de agenciamento: 

An anxious parent when his child hás been asked to do something may say ‘he promises, don´t you Willy?’ but little Willy must still himself say ‘I promise’ if he is really to have promised (4) (Austin, 2000 [1962], p. 63).
Se esse direito é do indivíduo, do self, do sujeito ou do "eu" Austin não discutiu, posto que não era psicanalista. Mas a diretriz me parece clara, no sentido de não fazer soçobrar o agente na constatividade - ou no discurso alheio, paternal, aliás (5). Afinal, a interpretação, muito mais que constativa, é um ato, vereditivo; arbitrário, pois.

Notas:

(1) É bom lembrar que Austin usa 'reduzido' entre aspas, traindo desde sempre uma desconfiança para com o termo (Austin, 2000 [1962], p. 68, por exemplo), já que o performativo explícito é, na verdade, um desdobramento posterior da linguagem, diversamente da força ilocucionária das enunciações, essa sim possivelmente originária. 

(2) Referência ao final da trigésima-primeira das Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise, volume XXII das Obras Completas de Freud.

(3) Referência à citação de Goethe que fecha Totem e tabu (Freud, [1912/13]).

(4) "Um pai ou mãe ansiosos podem dizer, quando seu filho foi requisitado a fazer alguma coisa: 'ele promete que fará, não é, Willy?'. Mas o pequeno Willy ainda assim precisa, ele próprio, dizer 'eu prometo' para que tenha realmente prometido". 

(5) Direito inalienável a, quem sabe, atribuir agência a si próprio?

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