quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Da anterioridade locucionária



Em seu "porém" à Teoria dos Atos de Fala, Butler fala em “capacidade referencial”, “representação de intenção”, “auto-representação”. Deixando de lado o fato mais específico de que é tanto da referência quanto da representação que Austin esvazia a importância, acredito que os termos apontem em última instância para a crença comum à autora e a Derrida, quanto à anterioridade locucionária, ou seja, quanto à locução anteceder o performativo e, de certa forma, determina-lo (ou limitar suas possibilidades).


Nada mais distante do próprio Austin, por certo, que chega a dizer explicitamente que 

We must avoid the idea (...) that the illocutionary act is a consequence of the locutionary act (1) (Austin, 2000 [1962], p. 114).

É, de fato, contra esta idéia que Austin se move o tempo todo. O contraponto que oferece é, desde o início, um contraponto ao logocentrismo, ou ao que chama de “falácia descritivista” (Austin, 2000 [1962], p. 3): basicamente a falácia segundo a qual a função da linguagem é representacional. O que parece incomodar tanto Butler quanto Derrida é a ausência de justificação última para embarcar em seu contraponto, o do discurso como ato, e da linguagem como meio de interação social. Mas me parece evidente que esta justificação nunca existirá: justificação última é como os pragmatistas redescrevem o termo verdade, um termo que só pode ser levado tão a sério justamente desde uma posição... constativista. Não há, portanto, justificação última para a visão performativa: adota-la é, em si, um performativo. 

É sempre possível, então, reler constatividade em qualquer performativo, e isto o próprio Austin deixa claro. O que ele faz é uma escolha. Divergir desta escolha é o que parece levar Derrida a se tornar seu próprio oponente, quando investe na supervalorização da “marca” (uma espécie de parente do locucionário), produzindo uma nova versão do logocentrismo que tanto criticava.

No caso de Butler, a divergência talvez seja o que a leve a escrever coisas estranhas tais como “the language may be saying something” (2) (Butler in Felman, 2003 [1980], p. 120) ou “an act refers only insofar as it presumes a situation upon which to act” (3) (Ibid., p. 122). Linguagem que diz, atos que presumem... diante do antropocentrismo pragmático de Austin, afirmações como estas só podem consistir, como escreve Felman (a respeito da polêmica entre Derrida e Searle, discípulo de Austin), num não-encontro entre os dois autores. A incomensurabilidade se resolve, para Butler, através de uma volta à estaca zero: “the performative pressuposes a referential field to act upon” (4) (Ibid., p. 122). 

Novamente, o performativo não pressupõe nada, pois pressupor é um ato humano. De qualquer forma, "o referente antecede o ato", eis a falácia descritivista renascida: a autora recusa o convite do filósofo a pensar sob um viés performativo. Ao contrário de Felman, que se diz, desde o início, seduzida por Austin, Butler parece seduzida por um Simbólico por demais - este sim, ao contrário do "eu" soberano que Butler lê em Austin e que não encontro por mais que procure - claro e unívoco, um campo referencial já constituído, e não, como Austin insinua, convenções relacionais em permanente ratificação, retificação e/ou subversão, a cada momento, a cada ato

A visada austiniana me parece muito mais simpática e empoderadora (na medida certa). Mas não é só isso: a reificação simbólica de Butler, Derrida e, dizem por aí, um certo Lacan (ou certos lacanianos), todos muito críticos, com razão, do Eu soberano, tem também, vejam vocês, fortes efeitos identitários, como pretendo demonstrar a seguir.

Notas:

(1) "Nós temos que evitar a ideia (...) de que o ato ilocucionário é uma consequência do ato locucionário". 

(2) "a linguagem pode estar dizendo algo".

(3) "um ato faz referência apenas na medida em que presume uma situação sobre a qual agir".

(4) "o performativo pressupõe um campo referencial para, sobre ele, agir".

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