quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Os dados dos sentidos

Ainda pensando sobre o atravessamento da percepção pela linguagem, lembrei que John Austin, um de meus filósofos preferidos, disse bastante a respeito. E como ele não é tão conhecido assim - mormente entre os psicólogos -, creio que vale uma breve exposição aqui.

As conferências de Austin sobre o tema são movidas por uma crítica à entidade “dados dos sentidos”, criada e mantida por uma dicotomia que a opõe às coisas materiais ou coisas no mundo. Ao conjunto destas conferências Austin dava o título ‘Sense and sensibilia’, que alude tanto aos elementos sensoriais, os supostos dados da sensação, quanto à dimensão do significado, através do polissêmico termo ‘sense’. (1) 

Se Lacan localiza a teoria fenomenológica da percepção na herança da escolástica medieval, Austin faz remontar as doutrinas que critica “pelo menos a Heráclito” (Austin, 1993 [1962], p. 7), passando ainda por Descartes e Berkeley.
"A doutrina geral, enunciada na sua generalidade, apresenta-se assim: nós nunca vemos, ou, de outro modo, percebemos (ou “sentimos”), ou, de qualquer maneira, nunca percebemos ou sentimos diretamente objetos materiais (ou coisas materiais), mas somente dados dos sentidos (ou nossas próprias idéias, impressões, sensa, percepções sensíveis, perceptos, etc.)" (Austin, 1993 [1962], pp. 8-9).

Austin frisa que tais teorias só podem nascer de um certo academicismo (Austin, 1993 [1962], p. 9), sendo os dados dos sentidos entidades puramente conceituais, criadas para serem “a resposta apropriada e exata à questão de saber o que [as pessoas] percebem” (Austin, 1993 [1962], p. 31), já que as coisas materiais são supostamente por demais enganadoras em suas mutações e disfarces para ocuparem este lugar.

Ao invés de sustentar a tese oposta (e gêmea), a que se poderia chamar de realista, segundo a qual o que se percebe são as coisas materiais (Austin, 1993 [1962], p. 10), Austin vai sublinhar a ampla gama de espécies diferentes de coisas que percebemos, irredutíveis a uma só entidade, seja “dados dos sentidos” seja “coisas materiais”:

"Podemos pensar, por exemplo, em pessoas, vozes, rios, montanhas, chamas, arco-íris, sombras, imagens na tela do cinema, gravuras em livros ou penduradas numa parede, vapores, gases – em tudo aquilo que as pessoas dizem que vêem (ou, em alguns casos, ouvem ou cheiram, i. e., “percebem”). São todas elas “coisas materiais”? Em caso contrário, quais exatamente não o são, e exatamente por quê? Não nos é concedida nenhuma resposta. O problema é que a expressão “coisa material” já está funcionando, desde o início, simplesmente como contraste para “dados dos sentidos”; não lhe atribuem neste caso, nem em qualquer outro, nenhum outro papel para desempenhar, e, além disso, não ocorreria a ninguém tentar representar como um único tipo de coisas as coisas que o homem comum diz que “percebe”" (Austin, 1993 [1962], p. 16).

Assim, os fatos da percepção são “muito mais diversos e complexos do que se tem pensado” (Austin, 1993 [1962], p. 10), e esta complexidade será demonstrada e avaliada justamente recorrendo-se à diversidade própria à linguagem, particularmente aos usos das palavras correntes, que “marcam muito mais distinções do que as vislumbradas pelos filósofos” (Austin, 1993 [1962], p. 10).

Eis esboçada uma abordagem lingüística e pragmática (pois é análise dos usos) da percepção, que se afasta tanto do empirismo quanto do que o racionalismo tem de reificador do que é, antes, abstrato e conceitual. Ambas as correntes, diz Austin, estão mais interessadas no conhecimento que na percepção, e orientam-se irresistivelmente por questões de certeza e dúvida: o interesse é “não tanto no ver, mas, sobretudo, naquilo de que não se pode duvidar” (Austin, 1993 [1962], p. 140). É curioso, neste sentido, que o experimento que citamos no post anterior tenha se estruturado em torno da questão da autenticidade (e da dúvida a seu respeito). Se eu fosse implicante insinuaria que isso é sintoma da aspiração epistemofílica da ciência - ainda tão moderna - de "purificar" a percepção; mas que esta é uma necessidade para que mantenha a suposição de saber que a pólis lhe dirige, isso é.

Enfim, nestas conferências específicas de Austin - que tanto valorizou a dimensão pragmática do discurso - a berlinda é reservada ao empirismo, uma surpresa para aqueles que ainda pensem o pragmatismo como uma versão filosófica do behaviorismo (2). O conceito de dados dos sentidos será questionado ali onde serve como base de apoio para inferências, alicerce de incorrigibilidade do edifício do conhecimento (Austin, 1993 [1962], pp. 140-141). Isto aproxima as idéias que Austin adianta aqui da lógica do que a vertente experimental da Psicologia chama de ‘processos descendentes’ (do sistema nervoso), bastante estudados pela Gestalt, e que os filósofos chamariam da primazia das categorias (ou da estrutura da linguagem) sobre a sensorialidade nos fenômenos de percepção (3) - ou o que Freud e Klein talvez chamassem de primazia da fantasia.
 
Que hoje a pesquisa do tema retorne à estéril materialidade dos sinais cerebrais (descendentes) que acompanham esta primazia da dimensão, discursiva, muito mais que neurológica, do sentido sobre a sensação, isso me entristece um pouco, é o que dizia.

Notas:

(1) O título é ainda uma alusão ao romance Sense and sensibility, de Jane Austen (Austin, 1993 [1962], p. 1, N. T.)
 
(2) Muito aqui poderia ser dito a respeito do que realmente orienta a concepção pragmática: uma espécie de antropocentrismo implícita em Austin, mas explicitada, por exemplo, por Rorty em seu deslocamento do valor atribuído à previsão, ao controle e à objetividade em direção a uma ética da contingência, da ironia e da solidariedade.
 
(3) É claro que Austin, pragmático que é, também problematiza, em outros momentos, a familiaridade que os filósofos pressupõem ter com as categorias em si, convenientemente reificadas. É em torno deste questionamento que se desenvolve, por exemplo, seu artigo Are there a priori concepts? (Austin, 1979 [1961], pp. 32-54).
 
Referências:
AUSTIN, J. L. [1962] Sentido e percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
____________ [1961] Philosophical papers. Oxford: Oxford University Press, 1979.

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