domingo, 1 de julho de 2012

Finde didático: John Langshaw Austin (2)

Austin caracteriza o aspecto ilocucionário como o foco principal para a análise do ato de fala, e define-o como a ‘força’ de um enunciado. Distingue-o do perlocucionário da seguinte forma: enquanto a fórmula deste é ‘I did X by saying Y’ (‘fiz X através do dito Y’), o ato ilocucionário seria mais bem exemplificado por ‘I did X in saying Y’ (‘Fiz X ao dizer Y’). Nos dois casos, Y é o ato locucionário, simples ato de dizer algo. 


A sutil diferença entre in e by pode ser mais bem entendida pelas palavras de Austin que introduzem o ato perlocucionário: 
“Saying something will often, or even normally, produce certain consequential effects upon the feelings, thoughts, or actions of the audience, or of the speaker, or of other persons (...). We shall call the performance of an act of this kind the performance of a ‘perlocutionary’ act (…).” (1) (Austin, J. L., 2000 [1962], p. 101). 
O ato locucionário é o ato de dizer algo, o ilocucionário o ato em dizer algo, e o perlocucionário o ato através (ou por meio) do dizer algo. A linha entre a ilocução e a perlocução, certamente problemática, torna-se um pouco mais clara quando Austin aponta, com seus exemplos, a diferença entre aconselhar (ilocução) e persuadir (perlocução), ou ainda, entre argumentar (ilocução) e convencer (perlocução). A perlocução é indissociável da reação do interlocutor – dizer ‘eu te convenço’, ou ‘eu te persuado’ são atos de fala quase sempre infelizes, o que talvez explique inclusive a raridade do aparecimento destes verbos na primeira pessoa do singular no presente do indicativo –, mas continua sendo um ato imputável ao falante. 

O ato ilocucionário reflete, pois, a intenção do falante ao proferir um enunciado. Já o perlocucionário, como sugere Marcondes (1992), traduz-se pelos efeitos não-convencionais do enunciado, fazendo os efeitos convencionais parte do ato ilocucionário. (2)

A intenção, por sua vez, parece firmemente ligada a uma avaliação posterior da força que teve o ato de fala. Austin, logo após propor a noção de ato ilocucionário, em “How to Do Things with Words” (2000 [1962]), diz que constantemente discutimos estes em termos de determinada locução ter tido a força de, por exemplo, uma pergunta, ou de dever ter sido tomada como, por exemplo, uma estimativa, etc. (3) O uso de verbos no passado sugere o aposteriorismo da noção de força, o que é fundamental para permanecermos em uma concepção pragmática da linguagem, sem recorrermos a uma metafísica da intencionalidade prévia ao ato de fala.

Talvez caiba, ainda, um exemplo simples que elucide melhor a diferença entre os três aspectos do ato de fala: dizer ‘cale a boca’ é um ato locucionário - um enunciado que faz sentido e se conforma a convenções comunicativas - que pode ter força ilocucionária de ordem, de pedido ou de sugestão, por exemplo, e causar efeitos diversos no interlocutor: além do esperado convencionalmente, que seria acatar a ordem, atender ao pedido ou seguir a sugestão, também irritá-lo, diverti-lo, etc. 

O aspecto ilocucionário do discurso, que depende intimamente de convenções e do contexto da fala, torna-se, dos três, o ato privilegiado, quando Austin se propõe a investigar a fundo as ‘famílias’ de atos de fala, agrupados por semelhança ilocucionária. Tais grupos de ilocuções, seu último empreendimento em “How to Do Things with Words” (2000 [1962]), são, na teoria geral dos atos de fala (marcada pela distinção locução/ilocução/perlocução) o que uma lista de performativos explícitos seria para a distinção abandonada, mais específica, entre constatativos e performativos. Os constatativos assim, se dissolvem em algumas das famílias de atos de fala, e seu critério avaliativo típico (adequação aos fatos), uma dimensão específica de análise, possível, dentro da doutrina geral da (in)felicidade. Neste sentido, em relação aos enunciados constatativos, diz Austin,

(…) they have no unique position over the matter of being related to facts in a unique way called being true or false, because truth and falsity are (except by an artificial abstraction which is always possible and legitimate for certain purposes) not names for relations, qualities, or what not, but for a dimension of assessment (…)” (4) (Austin, J. L., 2000 [1962], p. 149).

As famílias de força ilocucionária citadas por Austin, como um primeiro esboço, são: verdictives, exercitives, comissives, behabitives e expositives, caracterizados abaixo de forma resumida.
  1. Verdictives (‘vereditivos’, ou referentes a um veredicto): caracterizam-se estes atos de fala como a doação de um veredicto, seja este final ou não. Verbos típicos incluem interpretar, estimar, descrever, analisar, caracterizar, etc.
  2. Exercitives (‘exercitivos’, ou referentes a um exercício): exercício de poderes, direitos ou influência. Exemplos são votar, ordenar, aconselhar, prevenir, advertir, recomendar.
  3. Comissives (compromissivos, ou referentes a um compromisso): são atos que comprometem o falante com algo posterior, como prometer ou jurar. Abarcam também, de forma mais vaga, declarações de intenções (5) do falante. Exemplos, além dos já citados, incluem pretender, planejar, apostar, consentir, garantir, dedicar-se, concordar, adotar, etc.
  4. Behabitives (‘comportamentivos’, ou referentes a um comportamento; ou “conditivos”, ou referentes a uma conduta): adoção de uma atitude, incluindo reações ao comportamento de outrem. Exemplos incluem desculpar-se, agradecer, cumprimentar, congratular, saudar, etc.
  5. Expositives (expositivos, ou referentes a uma exposição): clarificação de razões, argumentos e comunicações. Esta categoria é discutível, já que o próprio Austin se pergunta se os atos aqui incluídos não seriam também ‘vereditivos’, ‘exercitivos’, ‘conditivos’ ou compromissivos. Exemplos são muitos, dentre os quais: afirmar, negar, descrever, mencionar, contar, responder, perguntar, conceder, concordar, corrigir, deduzir, argumentar, distinguir, definir, ilustrar, explicar, formular, referir-se a, entender, etc. São, talvez, o último reduto possível de uma constatatividade autônoma, agora já marcada irremediavelmente, portanto, pela subordinação da episteme a uma concepção dialógica e antropocêntrica da linguagem.

Ao final do percurso de Austin, portanto, a Teoria dos Atos de Fala se configura como uma proposta baseada em duas diretrizes: o interesse na performatividade da linguagem, enquanto ato (que compatibiliza lingüística e pragmatismo); e o deslocamento do foco de análise do aspecto locucionário para o ilocucionário, o que, a meu ver, aproxima Austin da psicanálise por postular que o fundamental é algo além do dito, mas nele incluído, ou melhor, a partir dele construído.

Esta semana terminaremos - eis um compromissivo implícito - nossa análise transversal da Verleugnung. E para fechar com um behabitive: bom domingo a todos!

Notas

1 Dizer algo irá frequentemente, ou mesmo normalmente, produzir certos efeitos resultantes sobre os sentimentos, pensamentos, ou ações do público, ou do falante, ou de outras pessoas (...). Chamaremos a performance de um ato desta espécie a performance de um ato ‘perlocucionário’ (...). 

2 Marcondes talvez tenha se baseado nas seguintes palavras de Austin: “It will be seen that the ‘consequential effects’ here mentioned (...) do not include a particular kind of consequential effects, those achieved, e.g., by way of commiting the speaker as in promising, which come into the illocutionary act. Perhaps restrictions need making, as there is clearly a difference between what we feel to be the real production of real effects and what we regard as mere conventional consequences (…).” (Austin, J. L., 1979 [1961], p. 102-103): Veremos que os ‘efeitos resultantes’ aqui mencionados (...) não incluem uma espécie particular de efeitos resultantes, aqueles obtidos, e.g., por comprometer o falante como no ato de prometer, os quais entram no ato ilocucionário. Talvez restrições precisem ser feitas, pois há claramente uma diferença entre o que sentimos ser a produção real de efeitos reais e o que vemos como meras consequencias convencionais. 

3 “It makes a great difference whether we were advising, or merely suggesting, or actually ordering, whether we were strictly promising or only announcing a vague intention, and so forth. These issues penetrate a little but not without confusion into grammar (...), but we constantly do debate them, in such terms as whether certain words (a certain locution) had the force of a question, or ought to have been taken as an estimate and so on.” (Austin, J. L., 1975 [1962]): Faz grande diferença se estávamos aconselhando, ou meramente sugerindo, ou de fato ordenando, se estávamos estritamente prometendo ou apenas anunciando uma vaga intenção, e assim por diante. Estes pontos penetram um pouco mas não sem confusão na gramática (...), mas constantemente as discutimos, em termos de certas palavras (uma certa locução) terem tido a força de uma pergunta, ou deverem ter sido tomadas como uma estimativa e assim por diante. 



4 Eles não têm nenhuma posição especial em termos de serem relacionados a fatos de uma forma única chamada ser verdadeiro ou falso, porque verdade e falsidade não são (exceto através de uma abstração artificial que é sempre possível e legítima para certos objetivos) nomes para relações, qualidades, ou não sei mais o quê, mas para uma dimensão de avaliação.

5 Os atos ilocucionários podem ser, de modo geral, considerados atos de intenção, apesar do ato de fala específico ‘eu intento X’ ser, na maioria das vezes, simplesmente um compromissivo; diz Austin que ´eu intento X´ é uma espécie de ´tempo futuro´ do verbo X, por tornar explícita a força de ´eu irei X´, tradicionalmente compromissiva..

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